No livro Um Atlântico liberal: think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva de direita na América Latina (2024), a pesquisadora María Julia Giménez analisa a ascensão da extrema direita e da agenda neoliberal. Essas organizações, embora se apresentem como apartidárias, têm desempenhado papel central na formação de lideranças e propagação da ideologia neoliberal em diversos países.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora explica as raízes históricas e o funcionamento dessas redes transnacionais. Segundo Giménez, a partir dos anos 2000 os think tanks ganham um novo fôlego e voltam a intensificar a defesa do neoliberalismo, sobretudo em reação ao ciclo de governos progressistas na América Latina.
Um pilar desse movimento é a Fundação Internacional para a Liberdade (FIL), fundada e presidida pelo controverso Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura. Uma filial brasileira da fundação foi inaugurada ano passado pelo ex-ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro (PL), Paulo Guedes.
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“Há que se entender que essa forma política de think tanks tem uma autonomia relativa em relação aos partidos porque ela se organiza a partir de um trabalho na intersecção, de uma série de campos que também tem uma autonomia. Me refiro ao campo da política, da economia, do saber, do conhecimento científico, da comunicação”, detalha Giménez.
Nesse sentido, ela defende que compreender o funcionamento dos think tanks é fundamental para mapear e até antecipar os rumos das disputas políticas no Sul global. Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: O que são os think tanks e o que explica a proliferação dessas redes propagadoras do liberalismo?
Think tanks são, a partir de uma perspectiva gramsciana para analisar a política, um tipo de aparelho privado de hegemonia. Uma forma organizativa que vai se desenvolvendo ao correr do século 20 e que vai ter como função principal a batalha das ideias e incidência, tanto nos processos de formulação de políticas, como também no debate público.
Importante esclarecer que essa forma política não é exclusiva do campo das direitas nem das direitas liberais. Ela atravessa o espectro político, da esquerda à direita, mas é possível evidenciar que tem sido muito efetiva para, principalmente, o campo da direita liberal.
Esse tipo de aparelho privado muito tem a ver com as transformações que vão se dar na relação Estado-sociedade–Estado ampliado, diria Gramsci –, ao longo do século 20. E a necessidade de antever a complexificação dessa malha social, cada vez mais complexa, a necessidade de construir uma série de aparelhos para disputar sentidos da realidade.
Esse debate vai ser muito importante desde o período entre guerras para os setores liberais em crise, em um confronto com essa forma de Estado, mas principalmente com o que foi o processo da Revolução Russa e todos os processos de mobilização e organização popular que estão disputando o sentido da realidade, do Estado, etc.
Um ponto fundamental foi a construção da Mont Pèlerin Society [organização internacional fundada em 1947 que promove o liberalismo], os debates de [Ludwing] Von Mises e de [Friedrich] Hayek, e a necessidade de formular formas organizativas e conectivas para a divulgação dessas ideias.
Desde os anos 1940 há uma orientação dentro do campo liberal, o que hoje poderíamos considerar como neoliberal, de construir esse tipo de aparelho para disputar sentidos da realidade.
Esse processo vai se refinando. Hayek vai ser uma pessoa muito influente nesse processo de internacionalização desse tipo de aparelho privado liberal e na defesa do liberalismo. Isso vai ter um primeiro boom, no caso da América Latina, já nos anos 1980, nas transições das ditaduras para as democracias atuais.
Nos anos 1980, associado a essa grande virada que vivia o mundo diante de uma nova crise do capitalismo que na América Latina significou os grandes endividamentos, a implementação de um programa de reformas estruturais.
Nesse contexto esse tipo de aparelhos retoma o embate na defesa do neoliberalismo, volta a aparecer com muita força a início dos anos 2000, associado aos processos de impugnação ao neoliberalismo na América Latina, e ao início de ciclo de governos progressistas na região.
Como as direitas na América Latina se organizam politicamente a partir dessas redes?
Há que se entender que essa forma política de think tanks tem uma autonomia relativa em relação aos partidos porque ela se organiza a partir de um trabalho na intersecção, de uma série de campos que também tem uma autonomia. Me refiro ao campo da política, ao campo da economia, ao campo do saber, do conhecimento científico, ao campo da comunicação. Os thinktanks são tudo e nada ao mesmo tempo, são um pouco de tudo isso e, ao mesmo tempo, não são.
Então, eles vão estar transitando não necessariamente na projeção deles mesmo como partido eleitoral, senão na projeção de uma série de quadros nacionais que tem capacidade para incidir em processos eleitorais. E aqui foi claro a atuação da FIL [Fundação Internacional para a Liberdade] na projeção de Macri, Milei [na Argentina], María Corina Machado [Venezuela], Duque [Colômbia], Lasso [Equador], Piñera [Chile].
Ao mesmo tempo, atua dentro das universidades sem ser universidade, dando diplomaturas, cursos de formação e workshop, atuam como veículos de comunicação sem ser tais, e muitas vezes incorporando jornalistas para que eles comuniquem como jornalistas no campo da comunicação.
Do ponto de vista econômico, embora defenda o neoliberalismo e o que significa como ideologia principal de uma forma de relação que estamos vivendo, não significa que seja a mera representação de um setor único do empresariado.
A gente vai encontrar o setor de alimentos, farmacêutico, agronegócio, imobiliário, bancário, financeiro, etc. Internamente, a particularidade desse tipo de aparelho privado [think tanks] é sua capacidade de conferir unidade a essas diversas frações que estão dentro da organização e, ao mesmo tempo, dar uma certa direção a essas ideias.
Tem momentos que internamente alguns setores podem se ver desfavorecidos por algumas das ideias propiciadas pelos think tanks. Por exemplo, não é única a posição que assumem diante da questão das drogas. São diversas as posições que consegui encontrar em relação a Cuba. O liberalismo tem diversas posições em relação ao histórico bloqueio da ilha. No entanto, a unidade consegue superar pequenos embates internos. A defesa desse liberalismo é que acaba sendo fundamental.
No livro, você caracteriza a Fundação Internacional para a Liberdade (FIL) como uma rede que reúne diversos campos na defesa de uma agenda política. Que conceitos estão em disputa?
A FIL tem uma característica muito particular. Por um lado, ela surge nos anos 2000, propiciada pela Espanha e os Estados Unidos, quase que montada em cima de uma rede já estruturada desde os anos 1980, principalmente pela rede Atlas Network [think tank liberal sediada nos Estados Unidos]. Não é a única mundialmente, existem outras redes consolidadas desde a Alemanha, por exemplo. Mas essa dos Estados Unidos foi fundamental na estruturação de um espaço de think tanks liberais na América Latina já desde os anos 1980.
E nos anos 2000, nesse embate, que tem a ver com a defesa do neoliberalismo nesse processo de impugnação, vai se associar as burguesias espanholas aos interesses do capital espanhol sobre a América Latina para disputar que coisas?
Disputar o sentido do Estado, disputar o sentido do desenvolvimento econômico, disputar o sentido dos direitos, o sentido da nossa territorialidade como América Latina, o sentido das nossas democracias. E por quê? Porque além dessa impugnação, se estava desenvolvendo na região um processo de transformação. Com ritmos diferentes, importante dizer. Não todos os governos progressistas da região tinham o mesmo caráter. Mas nessa transformação teve mudanças reais, não foi só uma ideia.
A partir disso é importante entender a atuação da Espanha e dos Estados Unidos. Os Estados Unidos tem historicamente tido, poderíamos dizer, desde a doutrina Monroe, profundos interesses no controle do continente e no seu papel como tutor do hemisfério Sul.
E a Espanha tem históricos vínculos coloniais com a América Latina, mas, além disso, é importante entender que assim como o neoliberalismo na América Latina consolidou uma fração de uma burguesia disposta ao desgaste do Estado e apropriação daquilo que era considerado público com as grandes privatizações, o que significou a concentração de renda em poucos setores, na Espanha também.
A saída do franquismo também esteve associada a essa razão neoliberal, consolidando uma burguesia que não apenas se colocou quase como única vitoriosa dessa democracia liberal pós-franquista atravessada pelo neoliberalismo, mas que também sai na procura de mercados na América Latina, sendo um ator fundamental no processo de privatização das empresas públicas, dos serviços públicos na nossa região.
Então, a gente pode considerar a importância que teve o capital espanhol na privatização de, por exemplo, a rede elétrica da Bolívia, o que significava a Repsol [petroquímica espanhola] no controle do petróleo na Argentina, o que significou a chegada dos grandes bancos espanhóis na região, Santander, etc.
Isso ao começo dos anos 2000 estava sendo colocado em questão. A rede elétrica foi nacionalizada na Espanha, Repsol foi nacionalizada pelo governo da Cristina [Kirchner]. Esses embates, tanto o capital espanhol com os interesses das burguesias latino-americanas e a histórica tutelagem norte-americana sobre a região viram a disputar.
Como avalia a virada ideológica de Vargas Llosa, de escritor de esquerda a representante do neoliberalismo?
Se a gente for considerar que Vargas Llosa morreu com quase 90 anos, a metade da sua vida ele foi um ator importante na defesa dos valores e princípios do liberalismo e como um grande anfitrião da direita liberal latino-americana.
A outra metade da sua vida ele teve uma breve passagem por organização de esquerda, e foi parte desse campo cultural progressista dos anos 1950 e dos anos 1960, que foi fundamental na divulgação da cultura latino-americana, principalmente na Europa, um momento de recepção da nossa literatura do outro lado do Atlântico.
Mas desde cedo, já no começo dos ano 1970, em plena guerra fria, Vargas Llosa já se coloca contra o processo revolucionário cubano e começa a se colocar à disposição de organizações e atores que poderíamos entender como um processo de fermentação desse neoconservadorismo que depois vai ser fundamental na vitória de Margaret Thatcher [Reino Unido] e de Ronald Reagan [Estados Unidos].
Vargas Llosa já nos anos 1980 tem encontros com Thatcher e com Reagan. Nos anos 1990 ele vai se candidatar às eleições de Peru com um plano 100% neoliberal e perde para [Alberto] Fujimori.
Ele realiza, podemos dizer, um autoexílio na Espanha, muito enfadado por essa derrota eleitoral e adotado pelo Partido Popular (PP) de Espanha, por José Maria Aznar, que foi fundamental para consolidação do neoliberalismo do outro lado do Atlântico pós-ditadura franquista. O Partido Popular de Espanha foi fundamental tanto para essa consolidação desse tipo de democracia limitada e neoliberal, como também para a formação da atual Vox [partido de extrema direita na Espanha].
Varga Llosa vai ser adotado nesse autoexílio que ele realiza na Espanha e vai começar a ser promovido por uma série de think tanks vinculados ao Partido Popular de Espanha, que coloca ele como uma voz legítima na defesa do liberalismo na América Latina.
No decorrer dos anos 1990, Vargas Llosa vai ter altos e baixos na sua capacidade de se colocar não só como reconhecido escritor, senão também como uma referência do liberalismo. E isso muda a partir do ano 2002 com a criação e a incorporação dele, efetivamente, no campo dos think tanks liberais a nível mundial e com forte incidência na América Latina com a fundação da Fundação Internacional para a Liberdade (FIL), fomentada tanto desde a Espanha como desde os Estados Unidos.
Esse salto que a gente viu de Vargas Llosa como liberal tem a ver com ele quando se incorpora no campo de think tanks liberais, propiciado por essas transformações que estavam andando na região, esse alerta que recebe a Espanha e os Estados Unidos em relação ao processo de impugnação e de ciclo de governo progressista e essa necessidade de iniciar um novo embate na região, na defesa do neoliberalismo.
A ascensão de figuras da extrema direita na América Latina tem a ver com essa atuação?
Seria muito difícil compreender de que se trata Vox sem voltar na importância que teve o Partido Popular da Espanha na fermentação de um Vox. Vox é um racha relativamente recente, de um processo muito mais longo que foi acontecendo no interior do Partido Popular de Espanha como um partido liberal desse processo de transição franquista em vias ao neoliberalismo do outro lado do Atlântico também.
Algo parecido a gente poderia pensar, se vai para o caso argentino e pensa em Milei. Seria muito difícil entender como seria o processo de conexões e de fermentação que dá lugar a Milei em 2023, sem entender uma trama que vem se construindo desde os anos 1980 e que tem um lugar fundamental não só na articulação liberal, na Argentina, senão na América Latina. Figuras como Alberto Benegas Lynch Filho, filho de Alberto Gaslini, o primeiro que lá no final dos anos 1950, traz Mises na América Latina para dar conferências na Universidade de Buenos Aires.
Seu filho nos anos 1970 cria uma escola de negócios que é um think tank para formar quadros no liberalismo e que Milei vai considerar sua referência intelectual hoje. Algo parecido a gente pode pensar para Bolsonaro, quem era seu ministro de economia? Quem é [Paulo] Guedes no histórico de think tanks liberais no Brasil e na formação de quadros liberais a partir da famosa Chicago Boys. A gente poderia ir para o Chile, e outros tantos países que nos mostram que de fato tem um processo que é de radicalização dessa direita, incorporação de uma série de pautas que tem a ver com o nosso presente.
Diante de todo esse quadro, o que fica de ensinamento para o campo progressista?
Se a gente considera as direitas atuais, sobretudo as latino-americanas, sobre essa influência importante que temos dos países do Norte, como uma novidade, a gente vai confundir o que é estrutural e o que é conjuntural disso que estamos vivendo hoje, inclusive cometer erros nas nossas avaliações e definições políticas, como campo progressista de esquerda.
Considero que essa malha de think tanks liberais, esse tipo de aparelho privado de hegemonia liberal com a atuação na América Latina, são um ator destacado, muito importante nos métodos de análise e de avaliação da política latino-americana, embora não exclusivos.
Esses aparelhos privados não são apenas correntes de transmissão do Norte para o Sul. A gente tem que entender os interesses locais em jogo para entender essa defesa do liberalismo. É possível visibilizar e por momentos até antecipar uma série de ações e de enquadramentos que vão a ser colocados em ação em alguns dos nossos países.
Desde que pesquiso esse tipo de aparelhos, em 2013, sinto vivendo uma espécie de déjà vu. Olho para a Argentina e está acontecendo aquilo que depois vai acontecer no Brasil ou que já aconteceu no Chile, ou que vai acontecer no Peru, ou que está por acontecer na Colômbia e que volta a se repetir na Argentina.
Mas não é um deja vú, é a mobilização desses enquadramentos que dá vida e efetividade a essa rede que venho pesquisando. É importante notar esse tipo de atores como um caminho, um ator para ir seguindo, porque nos permite capturar processos regionais e internacionais na atuação dessas direitas atuais.