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Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com disse...ver mais

Somos mulheres que viajam sozinhas

Ficar parada não nos garante segurança. Ser mulher já é, por si, um risco

Sou uma mulher que viaja sozinha. Tenho referências perto e referências distantes. Simone de Beauvoir era uma flâneuse— andava pelas ruas para pensar. Escrevia caminhando, escrevia do que caminhava. Pagu, nossa Patrícia Galvão, também andava: viajou como jornalista, militante, escritora. Com passaporte, com pseudônimo, com palavras afiadas. Como Clara Charf, que foi aeromoça durante a ditadura e usava os voos como estratégia para entregar cartas e mensagens de resistência. 

Nísia Floresta, feminista brasileira do século 19, atravessou o Atlântico em busca de educação e liberdade — foi a primeira a escrever sobre os direitos das mulheres entre nós. Virgínia Bicudo, pioneira da psicanálise e do pensamento sobre relações raciais no Brasil, estudou em Londres e voltou com outras lentes para enxergar o país. Isildinha Batista, também psicanalista, mergulhou na França nas teorias e práticas que cruzam subjetividade e raça. Voltaram com a bagagem cheia de conhecimento, pensamento novo, crítica viva. Mulheres em deslocamento forçado ou escolhido, político ou íntimo, mas sempre perigoso. 

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Leio mulheres que viveram o exílio, que saíram de seus países não só por necessidade, mas também por desejo — de encontrar outras paisagens, outras línguas, outras versões de si.  Na literatura, tantas mulheres se colocaram em movimento para escrever: Marguerite Duras, Hélène Cixous, Annie Ernaux. Mas também Claribel Alegría, poeta da Nicarágua que escreveu do exílio; Cristina Rivera Garza, mexicana, que pensa o corpo, a memória e a violência em trânsito; Conceição Evaristo, que faz da escrevivência um ato de deslocamento radical; Jamaica Kincaid, de Antígua, que escreveu a migração como ruptura e reinvenção; e Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria, que transita entre continentes e experiências. 

Cada uma, a seu modo, buscou no deslocamento o que não cabia na vida doméstica nem nos papéis prontos. Todas elas me disseram, ainda que por entre páginas: você também pode andar.

Sou uma mulher que viaja sozinha e levei muito tempo ensaiando essa possibilidade. Sou também uma mulher que viaja com outras mulheres. Tenho não só referências, mas também amigas corajosas que viajam o mundo sozinhas. Ana Júlia voltou recentemente de um congresso de advogados trabalhistas no Marrocos. Tuira esteve colhendo olivas na Palestina. Carla morou com seu filho ainda pequeno em Nova York. Minha mãe, aos 60 anos, foi à Irlanda e à Barcelona. Outra Carla querida passou o último ano entre a Bahia e a Tailândia, e com roupa de carnaval pegou um avião para a Europa. Nataly voltou da Alemanha há uma semana. Débora, há um mês. Rosa está no México. Juliane me escreveu ontem da África do Sul com notícias e recomendações. Sophia chega em poucos dias de uma temporada de trabalho político na Bélgica. E, em alguns dias, Ezequiela e Vittoria partem para uma aventura na China. E eu — essa que escreve — acabo de comprar uma passagem para um congresso de psicanálise em Lima, enquanto aplico para um intercâmbio. Tantas outras amigas e camaradas andam e vivem pelo mundo. Tantas, tantas.

Mas, nesta semana, todas nós éramos Juliana. Esperamos por seu retorno com vida. Que o resgate não fosse tragédia, mas apenas mais uma daquelas histórias que quase deram errado — como tantas nossas — mas que acabam em sorrisos e conselhos para as próximas viajantes. Mas não foi assim. 

Juliana Marins, publicitária e carioca, foi encontrada morta numa trilha em Nusa Penida, na Indonésia, após quatro dias desaparecida. Era uma mulher em movimento, como nós. Julieta Hernández, artista venezuelana de 26 anos, foi assassinada no interior do Amazonas em 2022. Viajava de bicicleta pelo Brasil, promovendo oficinas artísticas e culturais. Foi encontrada seminua, com sinais de espancamento e violência sexual. 

Marina Menegazzo e María José Coni, argentinas de 21 e 22 anos, viajavam pelo Equador em 2016 quando desapareceram. Foram roubadas, estupradas e assassinadas em Montañita. Os corpos só foram encontrados dias depois, embalados em sacos plásticos. E, infelizmente, eu poderia ficar muito tempo listando mulheres vítimas de violência mundo afora. 

Ficar parada não garante segurança

Mas ficar parada não nos garante segurança. As maiores estatísticas de violência sexual contra meninas e mulheres acontece dentro de suas próprias casas, a violência doméstica física, moral, patrilineal é um dado de realidade dos relacionamentos. 

Ser mulher já é, por si, um risco. Se lutamos para permanecer em nossos territórios, como Berta Cáceres, somos assassinadas. Se lutamos pela democracia e contra o fascismo, como Olga Benário, somos mortas. Se lutamos por justiça e direitos em nossas cidades, como Marielle Franco, somos executadas. Se viajamos, como tantas mulheres, e ousamos habitar o mundo, podemos ser estupradas, espancadas, desaparecidas. A violência contra mulheres não se limita ao deslocamento — ela é estrutural, global e persistente.

Segundo o Women Danger Index de 2019, o Brasil é o segundo país mais perigoso do mundo para mulheres que viajam sozinhas. De acordo com o Atlas da Violência 2021, cerca de uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil. Em 2023, o país registrou mais de 245 mil casos de violência doméstica reportados. E esses são só os registrados. 

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Entre nós há um humor tenso que serve de armadura: “Vai, mas só não cai no tráfico internacional de mulheres.”Compartilha a localização”. “Me avise quando chegar.” Rimos e nos preocupamos. Mas sabemos que podia ser qualquer uma de nós.

Ainda assim, não deixaremos de viajar. Nos protegemos como podemos. Nos alertamos, nos escutamos. Há dores que partilhamos em silêncio — perdas e violências — e ainda assim caminhamos. Por nós, por quem veio antes e por quem virá. 

Ser mulher no mundo, em movimento, nunca foi simples. O ato de andar sozinha nunca foi neutro. Exige atenção, coragem e apoio. Viajar é um ato radical e feminista. Ser flâneuse é mais do que vagar sem rumo — é gesto político, escolha consciente. Mas é também prazer: ocupar o mundo com o corpo inteiro. Andar, pensar, escrever. Estar presente. Desenhar outros mapas — os nossos.

Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.

Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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