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Esta coluna é um espaço para reflexões e debates sobre as produções e ações de profissionais do audiovisual negro. Aqui vamos conversar sobre mercado, políticas públicas, ações afirmativas e estrat...ver mais

Sobre cinema brasileiro e a proposição de humanidade dos cinemas negros

A ideia de "universal" nas narrativas audiovisuais se sustenta sobre uma concepção etno-classista de humano: cisgênero, branco, masculino, burguês, ocidental.

Tatiana Carvalho Costa

Falar sobre cinema negro em linhas gerais é falar sobre a disputa pela própria ideia de humanidade. Em um país como o Brasil, onde as estruturas do audiovisual seguem atravessadas por um modelo universalizante e excludente, pensar, fazer e ensinar cinema é, para corpos negros, um dos maiores atos de resistência, é a ressignificação de proposição de futuro. A presença negra nas telas e nos bastidores são atitudes políticas, que não se traduzem apenas pela visibilidade, é acima de tudo romper com um sistema que, histórica e epistemicamente, nos negou a possibilidade de existir como sujeitos criadores.

A ideia de “universal” nas narrativas audiovisuais se sustenta sobre uma concepção etno-classista de humano: cisgênero, branco, masculino, burguês, ocidental. A escritora Sylvia Wynter nos ensina que é contra essa super-representação, essa quase onipresente coincidência entre essa identidade que se diz universal, que precisamos lutar contra, pois ela não apenas exclui outras formas de ser e existir, mas compromete a própria humanidade em sentido amplo. Acreditar que o mundo pode ser reduzido a um conjunto tão restrito de experiências é parte do problema que enfrentamos diariamente, inclusive dentro da indústria do cinema, e que tem levado a uma possível extinção – física mesmo – da humanidade.

Nós, pessoas negras, vivemos sob o signo da captura: fomos historicamente objetos e moeda de troca em um sistema que nos capturou, escravizou, desumanizou. E a ideia de captura segue se reproduzindo até hoje. A produção audiovisual brasileira, mesmo em seus avanços recentes, ainda reproduz essa lógica ao confinar nossas existências a estereótipos ou, pior, ao transformar nossa presença em produto lucrativo sem redistribuir o poder. A pergunta que nos atravessa é: quem está lucrando com as narrativas negras hoje? Com quem ficam os direitos de imagem, os direitos autorais / patrimoniais? Quais empresas operam a dinâmica econômica a partir da nossa presença?

Durante este mês de junho, é realizada no Cine Humberto Mauro a mostra Intérprete do Brasil: uma homenagem a Grande Otelo. A mostra reúne um conjunto de filmes emblemáticos da carreira do ator e algumas das biografias e elaborações em torno de seu trabalho. Evocar figuras como Grande Otelo é fundamental nos dias de hoje, de crescimento e celebração de presença negra nas telas. Ele é dos maiores exemplos de descaptura simbólica no cinema brasileiro. Mesmo submetido a papéis que reforçavam um lugar subalternizado, ele operava uma força que transcendia o que lhe era imposto. O curador da mostra, Fábio Rodrigues Filho, tem um trabalho de pesquisa belíssimo sobre esse gesto de Otelo, que ele chama de “rasgo”. Era um ator de  presença incapturável. Mas a que custo? Quantos de nós ainda somos destruídos psiquicamente tentando sobreviver e existir em um sistema que insiste em nos limitar a uma sub-humanidade?

Nos últimos dez anos, vimos surgir uma nova geração de realizadores e realizadoras negras que, pela primeira vez na história do cinema brasileiro, estão ocupando também os espaços de decisão: pesquisa, curadoria, distribuição, formação, gestão pública. Isso não é acaso. É resultado direto das lutas do movimento negro por presença e por reconhecimento. Em minha pesquisa, nomeio esse fenômeno de QuilomboCinema. Aquilombar-se é construir coletivamente, é assumir que a descaptura não se faz sozinha. Ela exige aliança, cuidado, escuta, fortalezas compartilhadas. Como nos ensina a historiadora, Beatriz Nascimento, o quilombo é a experiência mais bem-sucedida de proposição de humanidade negra diante de um sistema desumanizante.

Mas a descaptura também é cansativa. Ela exige de nós uma permanente atuação. Não temos o privilégio de sermos apenas roteiristas, apenas diretoras, apenas pesquisadoras. A nossa atuação é, antes de tudo, pela nossa humanidade. Quando um sistema insiste em nos empurrar para os lugares da serviçalidade, da marginalidade ou da ausência, fazer cinema é um gesto de afirmação radical.

Cinema negro é cinema brasileiro porque revela o que o Brasil insiste em apagar. Porque propõe outras formas de contar, de ver, de viver. Porque é construído em comunidade, e não apenas para o mercado, para um devir-indústria – e para incidir nessa dinâmica econômica para que caibamos também nela. É um projeto de humanidade. E porque, no fim das contas, é também uma forma de amor. Amor por nós, pelas nossas histórias, pelos nossos mundos.

*artigo adaptado da fala na mesa Cinema Negro é Cinema Brasileiro: disputas, conflitos e percepções , na 14ª edição do Festival Olhar de Cinema, dia 15 de maio em Curitiba. A mesa também teve a participação do realizador e pesquisador Rodrigo Antônio e mediação da curadora Kariny Martins.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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