Por Bruno Lazzarotti e Clarice Miranda
Há um conhecido ditado que afirma “as pessoas têm direito às próprias opiniões, mas não aos próprios fatos”, destacando que juízos de valor devem sempre se basear em evidências concretas.
No entanto, há uma tendência persistente de manter crenças mesmo diante de dados contrários, impulsionadas por mecanismos como o viés de confirmação ou a dissonância cognitiva, especialmente quando essas crenças estão ligadas à identidade social ou a interesses pessoais.
Por isso, o pensamento crítico exige mais do que acesso à informação: exige coragem, ética e disposição para rever convicções cristalizadas. E isso é ainda mais verdadeiro quando a manutenção do preconceito contribui para sustentar a posição dos mais privilegiados na sociedade.
Esse cenário ajuda a entender por que estereótipos como o do “pobre preguiçoso” persistem e continuam ganhando força no debate público, mesmo sem qualquer respaldo científico.
Um exemplo recente dessa visão distorcida foi a declaração do bilionário Ricardo Faria, dono da Global Eggs e com patrimônio estimado em R$17,45 bilhões, segundo a revista Forbes. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele afirmou que contratar no Brasil está difícil porque “as pessoas estão viciadas no Bolsa Família” e que “não temos nem a chance de trazê-las para treinar e oferecer uma vida melhor, porque estão presas ao programa”.
Essa crítica reforça uma narrativa antiga e preconceituosa que associa a pobreza à falta de esforço individual, ou seja, o mito do “pobre preguiçoso”. Assim, ignorando completamente as inúmeras evidências que apontam os efeitos positivos das políticas de transferência de renda tanto no combate à pobreza quanto na inserção no mercado de trabalho formal.
Dados contra o preconceito
O que o “Rei do Ovo” opta por ignorar é que os dados disponíveis mostram justamente o oposto do que ele afirma.
Em um ano marcado pela retomada do emprego formal, quase todas as vagas criadas em 2024 foram ocupadas por pessoas cadastradas no Cadastro Único (CadÚnico), sistema que inclui os beneficiários do Bolsa Família. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), 98,87% dos novos postos formais foram preenchidos por pessoas inscritas nesse sistema.
Ou seja, se de fato há dificuldades em contratar, não é porque as pessoas não querem trabalhar, é porque já estão trabalhando. Uma ideia “inovadora” e “disruptiva” (para usar o jargão coach, que parece mais inteligível para alguns empresários) para a elite brasileira lidar com este problema seria aumentar salários e oferecer melhores condições de trabalho. Mas aí a lei da oferta e da procura perde a graça que tem quando favorece os empregadores.
Esses dados comprovam, na prática, que os beneficiários do Bolsa Família estão sim em busca de oportunidades dignas e já integram o mercado de trabalho. Dos 1,69 milhão de empregos gerados, 1,27 milhão (75,5%) foram preenchidos por pessoas que recebem o benefício, mostrando que o programa não desestimula o trabalho. Ao contrário, ele facilita a transição para a formalização e contribui para a autonomia financeira.
Portanto, ao contrário do que afirma o empresário, o Bolsa Família não aprisiona. Ele apoia. É uma política que fortalece a inclusão produtiva, combate a pobreza de forma eficaz e contribui para a construção de uma sociedade mais justa. Reproduzir o mito do “pobre preguiçoso” é ignorar evidências e reforçar estigmas que perpetuam desigualdades estruturais.
Conservadorismo
Para além dessas falas, o empresário tropeça em diversas contradições ao longo da entrevista.
Por exemplo, caberia perguntar se os R$ 132 milhões que sua empresa obteve de pelo menos 71 empréstimos não teria deixado o “rei do ovo” viciado em BNDES ou preguiçoso.
De outro lado, embora critique a burocracia estatal e defenda a autorregulação do mercado, segundo apuração da Folha de S.Paulo, ele participou de uma reunião com o presidente Lula em Brasília, encontro sobre o qual preferiu não comentar. Além disso, realizou doações para as campanhas de Tarcísio de Freitas e Jair Bolsonaro. Bastante participativo nos processos estatais para quem se diz defensor da “mão invisível do mercado”, não é mesmo?
Ao longo da conversa, outras pautas do pensamento conservador também aparecem em sua fala. Em dado momento, o empresário condena o que chama de polarização política com a frase “fica essa discussão de rico contra pobre”. Na prática, esse tipo de discurso tenta deslegitimar o debate sobre desigualdade social, como se apontar a concentração de renda fosse o verdadeiro problema e não a desigualdade em si.
Afinal, seria bem mais confortável para seus negócios bilionários operar em um país apático e com uma classe trabalhadora desmobilizada. Assim, o dinheiro poderia circular livremente e seguir concentrado no topo da pirâmide.
A perversidade da retórica reacionária
Esse tipo de retórica, além de infundada, serve a interesses bastante claros. Ao responsabilizar os pobres por sua condição, desvia-se o foco das reais causas da desigualdade, como a concentração de renda, os privilégios herdados, a ausência de justiça fiscal e o acesso desigual a direitos e oportunidades.
É especialmente irônico que essa crítica venha de um bilionário que, ao que tudo indica, não demonstra a mesma aversão a subsídios e isenções fiscais que beneficiam os setores mais ricos, tampouco aos altos rendimentos obtidos por meio de capital sem qualquer esforço produtivo.
Irônico, mas compreensível, já que garantir um mínimo de dignidade aos cidadãos talvez torne um pouco mais difícil que continue pagando não mais que R$ 1.670 mensais para que seus funcionários se mudem para a granja, coletem ovos e cuidem das galinhas o dia inteiro. Porque, no fim das contas, é a este objetivo que serve a estigmatização dos pobres e os ataques às políticas sociais.
A seletividade moral de sua crítica expõe não um compromisso com o mérito, mas uma rejeição a políticas públicas que, comprovadamente, promovem inclusão e ampliam o acesso dos mais pobres ao mercado de trabalho e à cidadania. Mas os fatos são inegáveis.
O Bolsa Família não escraviza ninguém. Pelo contrário, liberta. Ignorar essa realidade não é apenas um erro de julgamento. É um desserviço ao país.
Bruno Lazzarotti é professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro, coordenador do Observatório das Desigualdades e doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Clarice Miranda é discente do curso de Administração Pública da Fundação João Pinheiro, integrante do Observatório das Desigualdades.
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Leia outros artigos do Observatório das Desigualdades em sua coluna no Brasil de Fato MG.
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal