Por Julia Xavier
No trem, dois passageiros conversam. Um deles conta que conheceu um rapaz que passou dez anos em uma casa de recuperação e não conseguiu se livrar das drogas. A outra responde: “a pessoa tem que ter força de vontade. Foi assim comigo”. O diálogo segue, cercado de olhares, uns de compreensão, outros de reprovação, outros de impaciência.
A cena, tão comum, revela muito sobre como o uso de drogas ainda é visto na sociedade: cercado de julgamentos, moralismo e ideias equivocadas. Mais do que uma questão individual, o consumo de álcool e outras drogas envolve dimensões sociais, culturais, afetivas e de saúde.
As drogas, lícitas ou não, são substâncias que podem gerar algum tipo de alteração no corpo ou na mente. E, embora parte da sociedade ainda associe o uso a fraqueza, falta de caráter ou doença sem cura, essa visão não dá conta da complexidade do tema.
O uso pode ser ou não prejudicial, a depender de fatores como o contexto, as relações, o ambiente social e as condições de vida de quem consome. Por isso, o consumo não pode ser analisado isoladamente da história de vida e do território onde a pessoa está inserida. E, quando o uso se torna problemático, é preciso observar não apenas o uso da droga, mas todo o cenário.
Cuidado ampliado e sem julgamento
Desde 2003, o SUS assumiu oficialmente o cuidado de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas. Essa política rompe com a lógica que trata essas pessoas como casos de polícia ou como desvios morais, propondo acolhimento, cuidado e construção de projetos de vida.
O modelo brasileiro tem como base a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, que estabelece que o cuidado em saúde mental deve ser feito, prioritariamente, em serviços inseridos no território, ou seja, próximos da vida cotidiana das pessoas. A internação só deve ser uma exceção, pelo menor tempo possível, em leitos de saúde mental em hospitais gerais.
Para isso, foram criados os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), com diferentes modalidades. Especificamente para quem faz uso prejudicial de álcool e outras drogas, existem os Caps AD, que contam com equipes multiprofissionais, formadas por psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, psiquiatras, entre outros. Crianças e adolescentes também possuem atendimento próprio pelo Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (Capsi).
Redução de Danos e autonomia
Um dos pilares dessa política é a Redução de Danos, que foca a promoção da autonomia e busca minimizar os impactos negativos do uso, sem exigir, necessariamente, que a pessoa pare de usar a substância. Isso significa que a abstinência não é uma condição obrigatória para ser acolhido no serviço.
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Mais do que isso, esse processo reconhece que o usuário tem conhecimento sobre sua própria vida e seu consumo, e que é a partir desse diálogo que se constroem possibilidades de cuidado e transformação. Nesse momento, a autonomia é central. Cabe ao profissional de saúde apoiar o usuário na construção de seu projeto de vida, sem impor julgamentos, metas ou regras que não façam sentido para aquela pessoa e sua realidade.
Desafios que ainda persistem
Apesar dos avanços, ainda há desafios enormes para que esse modelo de cuidado chegue a toda a população. Os Caps AD, por exemplo, só é indicado para municípios com mais de 70 mil habitantes. Nas cidades menores, esse cuidado deve ser realizado nos Caps I, II ou, quando não há Caps, na própria Unidade Básica de Saúde.
Além disso, o número de serviços ainda é insuficiente e faltam profissionais capacitados para lidar com essa demanda de forma ética, qualificada e livre de preconceitos. Soma-se a isso o peso de uma sociedade que, muitas vezes, ainda adota uma lógica proibicionista, que criminaliza os usuários de drogas e deslegitima práticas de cuidado em liberdade oferecidas pelo Sistema Único de Saúde.
O SUS segue como referência de cuidado em saúde mental e no acompanhamento de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas. Mas, para que esse cuidado seja efetivo, é fundamental combater os estigmas e fortalecer políticas públicas que priorizem o sujeito no centro das decisões.
Julia Xavier é psicóloga e doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)
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— Este é um artigo de opinião, a visão da autora não expressa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.