Querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, o título de nossa conversa neste mês talvez cause desconforto a pessoas como nós, criticamente interessadas nas relações entre política e religião. Afinal, a prática da oração não estaria totalmente desprovida de dimensões ético-políticas? Não expressaria mero escapismo infantil diante da realidade? Não seria, por isso, um oportuno instrumento de cultivo de espiritualidades funcionais a sistemas socioeconômicos regressistas, antipopulares e injustos, como o caso do capitalismo?
Diante das relações que predominam entre religião e política na história, essas são desconfianças bastante legítimas. Em todo caso, elas me parecem desatentas – apesar de honestas – em relação às dimensões mais profundas desse ritual culturalmente universal, em particular quando considerado seu específico sentido na tradição espiritual cristã.
Nos textos bíblicos, vemos as aparições públicas mais contundentes do Nazareno precedidas por momentos em que Ele “se retirou para orar”, sozinho ou em grupo. É como se, em respeito à circularidade em espiral ascendente do ciclo vital, o Mestre estivesse recompondo suas energias pelo acesso às fontes profundas da vitalidade espiritual de seu corpo, residentes no silêncio meditativo diante do Maternal Pai cósmico, criador e sustentador de todas as coisas.
Em seu texto Trabalhando com Deus pela transformação do Mundo (CMI), o teólogo palestino episcopal-anglicano Naim Ateek sublinha que a oração cristã não se limita a um retiro individual. Trata-se de uma prática de profundo compromisso com o mundo cotidiano, “exigindo a participação ativa de quem ora. Não se busca a ajuda de Deus observando passivamente as coisas se deteriorarem”. Inspirado em Paulo, afirma: “Nós trabalhamos com Deus (…) somos parceiras (…) para tornar este mundo um lugar melhor para todas as pessoas”.
Trata-se da coerência, exigida pelo seguimento do Cristo Cósmico, entre “o anúncio da nossa fé, a liturgia e a oração, e a prática da justiça”, tão bem exposta no estudo bíblico sobre Mateus 25.31-46, Praticando Paz, Justiça e Misericórdia (CMI), do teólogo colombiano católico-romano Abilio Buendía.
Buscando esse sentido profundo da oração, pessoas crentes no Evangelho Libertador, fundem numa só as milenares práticas religiosas da prece e da denúncia/anúncio proféticos. Orar funciona, assim, como uma iniciação ritualística para nosso engajamento em ações político-culturais concretas, capazes de transformar nosso mundo em direção à justiça e, consequentemente, à paz.
É assim que nós e nossas comunidades fazemos-nos meios sacramentais de reconciliação de nossa espécie entre si, com os demais animais e formas de vida e com a Terra. Assim se cumpre em nós a prece-modelo do Cristo: o Reino de Justiça presentifica-se aqui e agora, dá corpo-vivo a um mundo novo no tempo e espaço, assim como o sagrado se fez carne no Nazareno.
Nesse sentido, os desafios para quem busca orientação na fé evangélica no atual mundo e sociedade estão particularmente evidenciados pela confluência, neste junho de 2025, entre a publicação dos dados relativos à religião no Censo Demográfico 2022 (IBGE) e o conjunto de datas que nele encontram lugar: as semanas do meio ambiente e de oração pela unidade cristã (SOUC), ambas comemoradas de 1º a 8 de junho; a Festa de Pentecostes, celebrada no domingo (8) de culminância dessa primeira semana; e a dedicação de todo o mês de junho à luta por dignidade das pessoas LGBT+.
O Censo 2022 nos informa que, em nosso país, o número de pessoas com 10 ou mais anos autodeclaradas católicas caiu de 65,1%, em 2010, para 56,7%. As autodeclaradas evangélicas cresceram de 21,6% para 26,9%, percentual bem menor que as expectativas mais otimistas (entre 32% e 37%).
Também cresce em nossa sociedade o número de pessoas sem religião (de 8% para 9,3%); de adeptas à Umbanda e ao Candomblé (de 0,3% para 1%); além das adeptas a outras religiões (Judaísmo, Islamismo etc.), de 2,7% para 4%. As tradições religiosas indígenas passam a compor o cenário nacional, com 0,1 % da população.
Complexifica-se nosso universo religioso em igual proporção à importância política tomada pela fé em nosso cotidiano. Faz sentido, portanto, perguntar: caminhamos rumo à Babel, onde nossa arrogância transformará diferenças em desigualdade, violência e guerra (Gênesis 11.1-9), ou à Pentecostes, onde a ação da Divina Rúah nos capacitará a fazer unidade na diversidade (Atos 2.1-47)?
Não desconheço as análises que, lendo as tendências contemporâneas, em particular a ascensão articulada do neofascismo e do fundamentalismo, vaticinam uma distopia futura ao estilo O Conto da Aia: um Brasil-Evangelistão, estabelecido pela aliança entre narcopentecostalismo e regressismo político. Essa é, sem dúvida, uma possibilidade. Principalmente se nos ativermos a interpretar nossa realidade de modo limitado às ações das lideranças midiáticas de megaigrejas e da autonomeada bancada evangélica.
Por outro lado, se observarmos os dados do Censo 2022 em profunda oração, analisando a história para além das aparências imediatas – como fez Pedro em Pentecostes – poderemos enxergar a força regeneradora do Sagrado Vital insinuando-se em nosso horizonte.
Como Pedro, temos alguns motivos para “repousar em esperança” (Atos 2.26), apesar de o mundo caminhar a passos largos rumo a uma hecatombe nuclear, protagonizada pelos efeitos da ação de lideranças políticas e religiosas globalmente representativas do monoteísmo abraâmico.
Mesmo com algumas surpresas, os dados atualizados sobre o cenário religioso nacional deixam ver a enorme importância mantida pela fé cristã em nossa sociedade: nada menos que 83,4% de nós nos autodeclaramos adeptos de alguma tradição cristã.
Digo isso sem nenhuma celebração. Afinal, seguindo a autocrítica do teólogo inglês episcopal-anglicano John Stott, devemos negritar o descompasso, em nossa sociedade, entre o crescimento da pertença cristã e uma proporcional ampliação da justiça socioambiental e dos direitos humanos. Estaríamos, portanto, diante de um “crescimento sem profundidade”?
Chamo atenção, nesse sentido, a duas tendências gerais do universo cristão nacional, explicitadas quando os dados a ele relativos são desagregados por faixas etárias, identidades étnico-raciais e gênero: predominantemente pentecostal, a adesão ao evangelicalismo, ainda em expansão, está hoje majoritariamente formada por jovens, dentre os quais 31,6% são crianças entre 10 e 14 anos. A curva pentecostal entre pessoas de 10 e 24 anos empatou, pela primeira vez, com a católica.
Ademais, quando observados os grupos religiosos por cor/raça, vê-se que entre as pessoas autodeclaradas brancas 60,2% identificam-se católico-romanas e somente 23,5% evangélicas. De fato, a maioria das evangélicas se autodeclaram ou pardas, 49,1%, ou pretas, 12%. Por fim, 55,4% deste agrupamento cristão é formado por mulheres.
Esse cenário nos aponta um futuro demográfico da fé cristã brasileira cujo rosto, continuando ou não a crescer em pertença ampla, será pentecostal, feminino, negro e, consequentemente, periférico e pertencente aos grupos sociais mais explorados da classe trabalhadora.
Aí reside nossa esperança, já que, segundo nossa fé (I Coríntios 1.26-28), o Sagrado costuma agir na história justamente a partir daquilo “que o mundo considera loucura”, envergonhando “os sábios”, das “coisas fracas para envergonhar os poderosos”, das “desprezadas pelo mundo, tidas como insignificantes (…) para reduzir a nada aquilo que o mundo considera importante”.
Parafraseando Gonzaguinha, eu oro esperançado porque acredito nessa mulherada pentecostal preta, periférica e trabalhadora. Para que a Nova Jerusalém, a Cidade-Jardim, se estabeleça entre nós em lugar da barbárie, dependerá de quanto nós seremos capazes de assumir o verdadeiro grito de guerra #EmpodereSuaIrmã.
Afinal, são elas que protagonizam a instituição de grupos de apoio e defesa de suas filhas e filhos LGBT+; que lideram a criação das comunidades (neo)pentecostais populares inclusivas e afirmativas em expansão no país; são elas que constituem majoritariamente os grupos de ativismo ecológico cristão, que gradativamente se fazem perceber; que lideram os movimento sociais populares, que, desde a década de 1990 fazem as lutas por Justiça no Brasil e América Latina, como demonstra a pesquisa Evangélicos e a Política.
Oremos, em profundidade, para que o nosso Pai e Mãe “envie seu Espírito e renove a face da terra” (Salmo 104); para que, como em Pentecostes, Ele sopre sobre as periferias do país, renovando mentes e corações, acendendo o fogo das utopias de igualdade e nos permita redescobrir a comunhão no Cristo e defender, juntas, a vida plena de nosso povo: fim da escala 6×1, isenção do IR até R$ 5 mil e taxação dos super-ricos.
Assim teremos tempo para descanso semanal e cuidado da família, recursos para saúde, educação e moradia digna, para o reflorestamento de nossas cidades e entornos, dando dignidade para todas as cores, crenças e identidades “à sombra do Altíssimo” (Salmo 91).