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O STF acerta ao avançar na regulação, mas esta deveria ser uma tarefa do Congresso

Apenas conter as plataformas via lei é insuficiente, ainda que muito importante. A sociedade precisa também reduzir sua dependência delas

Por Helena Martins

Ao julgar a constitucionalidade do Marco Civil da Internet (MCI), o Supremo Tribunal Federal (STF) na verdade atuou no vácuo deixado pelo Congresso e acabou modificando a regra sobre a internet no país, sem o debate público que deveria ocorrer no Legislativo. O resultado é uma decisão que avança em alguns aspectos, especialmente quanto à necessidade de regulação, mas tem problemas, inclusive conceituais, como o fato de valer para sites, gestores de nomes de domínios, provedores de hospedagem e aplicativos de mensagens, não apenas para redes sociais, que são os espaços dos principais problemas que o STF pretendia atacar. Na prática, o Facebook passa a ser tão responsável quanto a Wikipedia ou o registro.br por conteúdos.

De um lado, a rede não é a mesma de onze anos atrás. O Marco Civil da Internet precisava e ainda precisa ser atualizado tendo em vista as transformações que levaram a um absurdo controle da circulação de conteúdos por parte de poucas corporações transnacionais, as chamadas plataformas digitais. São elas que definem o que vemos ou não nas redes e se um conteúdo deve ou não ser recomendado, o que se dá por suas afinidades políticas e também pelo recebimento de pagamento para impulsionar determinada publicação. Um cenário bastante distante de uma internet pautada apenas pela produção de conteúdos “por terceiros”, para usar o termo em debate. 

A decisão do STF acerta, portanto, quando reconhece a responsabilidade dos provedores de aplicações em casos de anúncios e impulsionamentos pagos ou rede artificial de distribuição (chatbot ou robôs). Também contribui ao demandar a autorregulação sobre notificações, devido processo e transparência, ainda que isso devesse ser objeto de uma co-regulação que contasse com participação do Estado e da sociedade. Afinal, a importância de espaços como as redes sociais fez deles espaços públicos que, como tais, não devem ter as regras de funcionamento definidas apenas pelas corporações, que é o que ocorre hoje. Esse vácuo faz com que as plataformas frequentemente derrubem conteúdos sem que sequer notifiquem seus criadores, muito menos abra espaço para contestação da decisão e para retratação em caso de erro. Tal poder tem gerado limitações à liberdade de expressão de mulheres e a população LGBTQIAPN+, por exemplo, ao passo que muitos grupos neonazistas, promotores de “desafios” violentos e outros criminosos permanecem no ar por anos, apesar de serem denunciados.

Diante disso, é claro que precisamos pensar em formas de enfrentar e evitar a circulação de conteúdos criminosos. A resposta a isso, contudo, é mais complexa do que a demonstração de vontade do STF faz parecer. Há riscos de, ao se responsabilizar as plataformas, levá-las a uma ampla política de retirada de conteúdos, o que pode afetar a liberdade de expressão. No caso da decisão, o STF fez isso ao definir que os provedores têm o dever de retirar conteúdos ilícitos após aviso às empresas, sem a obrigação de ordem judicial, em casos como condutas e atos antidemocráticos; incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero; crimes praticados contra a mulher, entre outros. Ora, a questão é dar o poder às plataformas de definir se houve ou não crime. Além de ampliar o poder delas, isso nos submete ao seu crivo interpretativo, que é político. Não custa lembrar o alinhamento das plataformas à extrema direita e as mudanças que Meta, Google e X promoveram em seus serviços, nos últimos meses, a fim de diminuir as restrições à circulação de conteúdos racistas, misóginos e transfóbicos. Também não devemos esquecer que as plataformas têm apoiado os ataques à democracia. Tudo isso torna bastante perigoso que passe a caber a elas e não ao Judiciário definir pela manutenção ou não de uma postagem no ar. No fim das contas, abre-se margem para mais e não menos censura privada.

Como esses alertas têm sido feitos há anos – a partir, por exemplo, da Coalizão Direitos na Rede, que reúne diversas organizações e se manifestou sobre o tema inúmeras vezes –, o STF acertou ao manter os chamados crimes contra a honra fora da nova interpretação, evitando o que poderia ser enxurrada de notificações e derrubadas de críticas contra políticos, por exemplo, inclusive a partir de jornalistas. Mas acabou adotando uma solução “no meio do caminho” ao definir que a responsabilidade não se dá sobre conteúdos individuais, focando na manutenção da circulação de conteúdos criminosos, ao passo que também “abriu a porta” para que essa responsabilidade passe a existir após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal. Isso abre margem para uma retirada mais ampla. É perigoso ter tantas responsabilidades se de fato, não há como fiscalizar o cumprimento delas e quando sabemos que o conhecimento e possibilidades de notificação é bastante desigual.

O que fica claro e foi reconhecido até mesmo pelo STF em sua decisão é que é fundamental que o Congresso Nacional avance em uma regulação que proteja direitos. Cobramos que a sociedade seja parte da elaboração de uma nova lei que enfrente o poder das grandes plataformas no controle do debate público e garanta uma arquitetura regulatória capaz de dar conta dos desafios do ambiente digital, algo que não poderia ser resolvido por uma decisão do Supremo e que será fundamental inclusive para reduzir o poder discricionário das plataformas. Apenas conter as plataformas via lei, todavia, é insuficiente, ainda que muito importante. A sociedade precisa reduzir a dependência em relação às plataformas. Nesse sentido, é importante que o governo federal, universidades e demais instituições avancem na proposição de alternativas soberanas.

* Helena Martins é professora da UFC e integrante do DiraCom.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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