Inspirado na obra As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, o espetáculo Veias Abertas 60 30 15 seg, dirigido por Marco André Nunes, aposta em cenas curtas, de 15 a 60 segundos, para discutir a exploração histórica do continente, os retrocessos políticos atuais e a potência cultural dos povos latino-americanos. A rapidez dos 80 quadros cênicos “reflete a velocidade do consumo de informação nas redes”, explica em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.
O diretor defende que o teatro é um espaço fundamental para a reconstrução da memória coletiva e a sensibilização política das novas gerações. “O teatro é um convite para ter contato com a comunidade, discutir presencialmente temas urgentes”, diz. Ao abordar o avanço da extrema direita no continente, ele afirma que “a besta do fascismo está sempre solta, e está muito solta aqui na América Latina”.
A peça narra a história de um casal, um militar e um funcionário da United Fruit, que se conhece em aulas de dança e decide se casar. O casamento coincide com o Massacre das Bananeiras, em 1928, na Colômbia, quando o Exército reprime uma greve, matando mais de 2 mil trabalhadores
A montagem está em cartaz no Sesc Pompeia (SP) até 4 de julho, com sessões entre quarta e sexta-feira às 19h, e na sexta também às 15h. Os ingressos estão disponíveis neste link. Depois, segue para o Sesc Copacabana (RJ) a partir do dia 17. As sessões acontecem de quinta a domingo, sempre às 18h.
Confira a entrevista completa:
Explique um pouco sobre a peça e como surgiu a ideia de dividi-la em quadros tão curtos.
O interesse vem do Galeano e de nós, como companhia, que já trabalhamos há algum tempo com o Rio de Janeiro e o Brasil. Fizemos espetáculos como Caranguejo Overdrive, Cara de Cavalo, Guanabara Canibal, que tratavam muito da cidade do Rio e da realidade brasileira por meio dela. E aqui vimos a chance de ampliar esse escopo e trabalhar sobre a América Latina, pensar a América Latina. E nada melhor do que o livro do Galeano, Veias Abertas da América Latina, que é do início dos anos 1970, mas continua extremamente atual. Fala da exploração, da dependência econômica da América Latina e da espoliação das nossas riquezas.
Sobre as cenas curtas: o espetáculo começa com quadros de 60 segundos, depois passa para 30 e, por fim, para 15 segundos. O tempo vai sendo reduzido, comprimido, o que reflete o tipo de exploração que vivemos hoje. Nosso tempo também é explorado, retirado de nós. Estamos sempre correndo, tentando dar conta de tarefas, vivendo um tempo que nos escapa. Um tempo que exige produtividade constante, mas que, no fundo, sentimos estar sendo perdido. Estamos perdendo o nosso tempo.
Há também a questão das redes sociais, em que tudo precisa ter no máximo um minuto. Isso também é uma forma de compressão. Trabalhar com essa sintaxe e ver como ela ressoa no teatro é estimulante. Vivemos presos nesse fluxo das redes, com a sensação constante de que não estamos vivendo tudo o que deveríamos. “Alexa, desliga a luz!” A estrutura dos 80 quadros cênicos, com durações de 15, 30, 60 segundos, reflete essa velocidade do consumo de informação nas redes, esse rolar infinito no celular.
Como você vê a relação entre esse formato fragmentado e a dificuldade atual de construir memórias coletivas?
Esse é justamente o desafio da peça. Como utilizar um sistema breve, instantâneo, do qual retemos muito pouco, para tratar do que o próprio livro propõe: história e memória. Como trabalhar esse minuto para que ele não se esvaia, mas contenha informações e nos impacte a cada instante? Isso é próprio do teatro, da presença. Porque, embora a sintaxe se assemelhe às redes, o veículo é outro: o teatro é presença radical.
Uma amiga que não costumava ir ao teatro viu um espetáculo meu e, ao final, me disse: “Poxa, Marco, eles estão vivos, né?” Aquilo que é básico no teatro, a presença, para ela foi surpresa e encantamento. Então, quando colocamos 60, 30, 15, 10, 5 segundos no palco, subvertemos essa lógica do tempo. Imprimimos afeto nesse tempo reduzido. E o acúmulo de afetos vai criando narrativa, beleza, história.
Dentro desse contexto de fragmentação social e da manipulação da atenção nas redes, há também o papel do teatro em refazer laços de comunidade e fortalecer a consciência crítica coletiva, certo?
Exatamente. Essa sempre foi uma função do teatro. E acho que, no fim, só vai restar o teatro. Falo isso meio como brincadeira, mas é cada vez mais real. O contato humano está se tornando raro. As pessoas estão mais em casa, com redes, streamings, deliveries… tudo nos mantém isolados. O teatro é um convite para sair desse lugar, ter contato com a comunidade, discutir presencialmente temas urgentes.
Há algo muito bonito no teatro: quando ele é bom, começa quando termina. Quando as luzes se apagam e a cortina fecha, começa dentro de você. As ideias, as imagens reverberam. Tenho espetáculos que vi há 30, 40 anos e que ainda vivem em mim. Mesmo que a lembrança já tenha se transformado, continuam atuando dentro de mim. E sigo conversando com outras pessoas sobre eles até hoje. Isso vira memória afetiva.
A América Latina de hoje mudou desde que Galeano escreveu Veias Abertas, mas ainda há semelhanças profundas com o que ele denunciava. Como a peça lida com essa tensão entre passado e presente?
A peça busca essa atualidade também pela estratégia do tempo comprimido. Galeano continua extremamente atual porque a América Latina nunca deixou de ser explorada. Quando surge algum governo que tenta repartir minimamente as riquezas, isso logo é destruído.
Tomamos como fio narrativo do espetáculo o massacre na fábrica de banana da United Fruit Company, na Colômbia, no início do século 20. Trabalhadores explorados por essa empresa americana entraram em greve por melhores condições e foram massacrados com o apoio do exército colombiano. Foi um massacre brutal. Isso exemplifica como qualquer tentativa de respiro, de justiça, é rapidamente esmagada. Galeano escrevia sobre isso e ainda é verdade hoje.
A obra fala também da resistência popular. Que escolhas estéticas e simbólicas vocês fizeram para representar esses temas?
Essa é uma grande questão. Galeano fala dos ciclos de exploração: ouro, prata, café, borracha, algodão, açúcar, banana… E dos que tentaram resistir, como [o revolucionário mexicano Emiliano] Zapata, que tiveram fins trágicos. Mas, ao mesmo tempo, nós produzimos alegria, beleza, felicidade. A cultura latino-americana é riquíssima.
Através da música, da dança, dos corpos, da arte, criamos algo milagroso e curativo. O espetáculo carrega as questões políticas, mas também a alegria. Não é só sobre as mazelas. É sobre a potência estética e cultural da América Latina. Tem música, dança, canto, beleza, tudo isso entrelaçado às dificuldades que vivemos.
Vivemos um momento de avanço de discursos conservadores e autoritários em diversos países da América Latina. Como a peça dialoga com esses retrocessos? Que caminhos aponta para a reconstrução de uma identidade latino-americana progressista e plural?
Trazemos isso com muita força nos discursos e nas escolhas estéticas. Como comentei, há música, dança, máscaras, muitas inspiradas em culturas latino-americanas. Tudo isso já é resistência. O espetáculo se passa numa sala de dança, onde uma professora dá aula a dois meninos, um do exército, outro operário. Esse mesmo espaço é usado para reuniões políticas.
Ou seja, o chão da peça é também o chão da política e da possibilidade. Temos discursos históricos, como o de Abya Yala e o da [ex-]presidenta Dilma [Rousseff], que surgem ao longo da peça e apontam caminhos de resistência, de reexistência, de superação. Nós chegamos até aqui vivos. Mas o que enfrentamos hoje é muito grave. A extrema direita, em muitos pontos, é fascista. O que acontece aqui no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, como na Itália e na Hungria, afeta diretamente nossas vidas.
E volta e meia essa ameaça ressurge. A extrema direita é como uma besta. A besta do fascismo está sempre solta. E está muito solta aqui na América Latina. Não podemos nos descuidar. Nossa forma de resistir é colocar essas questões em cena. A arte sensibiliza de um jeito diferente. Quando recebemos essas mensagens por meio do teatro, elas tocam outros lugares, provocam entendimentos mais profundos.
Como você espera que o público, especialmente os mais jovens, se conecte com essa memória política e histórica da América Latina a partir da peça?
A companhia está fazendo 20 anos com esta peça. Sempre tivemos um público jovem. Os de 20 anos atrás já não são tão jovens, mas outros seguem chegando. Tenho um compromisso com esse público. Buscamos criar uma linguagem que os estimule. Os quadros curtos, de 60, 30, 15 segundos, são também uma forma de dialogar com a sintaxe das redes e, a partir disso, sensibilizá-los para as questões profundas que abordamos.
O teatro não muda a vida de ninguém de forma direta, mas balança estruturas. Cria interesses, desejos. Se eu conseguir que os jovens se interessem pela nossa história, que queiram saber mais, ler Veias Abertas, isso já é maravilhoso. Se todos saírem com vontade de ler o Galeano, já seria uma coisa incrível.
Para ouvir e assistir
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