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Viviane Sarmento é doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), professora adjunta da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), pesquisadora sobre os significados s...ver mais

Botar o corpo na rua

O desejo de amar e me casar com uma mulher resultou em desfazer toda a corporalidade performada e assumida por mim durante muitos anos

A heterossexualidade é compulsória e corponormativa. Começo esse texto com essa afirmativa, porque acredito que precisamos urgentemente tornar comum a ligação da hegemonia heterossexual e da corporeidade capaz.

Quero contar um pouco da minha história para me fazer entender, não apenas para quem lê, mas para mim mesma.

Sou irmã de uma mulher com deficiência. A presença dela na minha vida é uma contradição de orgulho e medo. Orgulho de conhecer suas expressões, arte e luta. De ter aprendido a sua língua, de conhecer a história que ensino para os estudantes em salas de aula da UFAPE.

Conheço a história sobretudo porque eu estava lá. Estive lá quando as matrículas foram negadas e quando invadia os espaços dos jogos internos dizendo que todos tinham que jogar, mesmo sabendo que o forte dela não era esporte.

Orgulho da sua primeira exposição de quadros, da primeira entrevista que interpretei, mesmo sem ser intérprete. Orgulho da criatividade, da sua personalidade forte e do quanto a arte molda todas as suas ações.

Mas senti medo com e por ela. Medo de como tantas situações que, para mim, pareciam simples, mas para ela foram desgastantes e motivos de muitas lutas. Medo de como isso a deixava triste, do sofrimento depois da idade escolar, dos amigos que se foram.

Medo, porque os olhares continuam em todos os espaços em que ela ousa pisar. Eu seguro a mão dela até hoje, mesmo ela já sendo uma mulher de 33 anos, e da mesma forma seguem os olhares de curiosidade, de pessoas que falam comigo para saber sobre ela, como se ela ali não estivesse, olhares de quem acha que sou uma heroína caridosa porque me importo com ela.

Esse medo limitante que muitas vezes faz a gente pensar excessivamente sobre quais lugares frequentar, como se portar, como se expressar, como protegê-la e, ao mesmo tempo, o susto em perceber o quão compulsoriamente limitadora eu posso estar sendo em meus medos.

Atravessada por isso, sou uma mulher bissexual. A heterossexualidade sempre foi a minha presença no mundo e estava tudo bem pra mim. Era mais fácil, embora em alguns momentos eu tivesse a ousadia de ser livre.

Mas aconteceu de retribuir o olhar de uma mulher, depois o abraço, depois o beijo em uma festa e depois o amar. O desejo de amar e me casar com uma mulher resultou em desfazer toda a corporalidade performada e assumida por mim durante muitos anos.

Foi nesse momento que eu visitei o mesmo medo que me era comum. Os olhares, a repulsão de quem dizia amor por mim, os convites não feitos e os desfeitos, o quanto era preciso pensar excessivamente em que lugares frequentar. Segurar a sua mão me fez visitar os olhares de estranheza e pena que recebo ao segurar a mão da minha irmã.

Vivenciar a homofobia traz muito medo, mas brota dentro da gente uma coragem bem rara de nos mostrarmos como somos, de reinventar a compulsão normativa, do desejo de amar sem temer, de ter orgulho. Orgulho de quem sou, da minha história, do meu querer.

A heterossexualidade compulsória está entrelaçada com a capacidade corporal compulsória, porque ambos os sistemas funcionam para reproduzir o corpo sobre uma única ótica, a partir de uma única história, tendo o capacitismo e a homofobia como agentes de manutenção desse sistema.

A questão é que nossa existência – das pessoas com deficiência, da comunidade LGBT+ e pessoas LGBTs com deficiência – fazem a promessa da cultura corporalmente capacitada entrar em colapso.

Por isso é tão potente ter orgulho, segurar na mão, expressar com as mãos, botar o corpo na rua, celebrando sermos e que substancialmente possamos enfrentar o medo e a dor rumo à transformação coletiva.

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