O julgamento do assassinato da jovem indígena kaingang Daiane Gria Salés entrou para a história como o primeiro etnofeminicídio reconhecido pelo sistema de justiça brasileiro. Quatro anos após o crime, o caso foi relembrado durante o seminário “Feminicídio: entre a misoginia e o negacionismo”, realizado no Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), como um marco político e simbólico na luta contra a violência de gênero e a invisibilização dos povos originários.
O debate, realizado na última sexta-feira (27), contou com a participação da promotora Lucia Helena de Lima Callegari, que atuou no julgamento, e da liderança indígena Regina Sales, representante do GT Guarita. Também pela manhã, a psicóloga Thaís Pereira Siqueira apresentou o surgimento do Lupa Feminista, coletivo que coordena, e foi lançado o Dossiê Etnofeminicídio – Daiane Griá Salés.
Durante sua exposição, Callegari compartilhou a experiência de atuar no julgamento, ocorrido em fevereiro deste ano. Destacou o impacto emocional e simbólico do processo, que resultou na primeira condenação por etnofeminicídio no Brasil. “Estamos falando de uma menina com toda a vida pela frente. Daiane sonhava em ser professora. Gostava de cantar no coral da igreja. Brincava com as amigas. Aos 14 anos, começa a querer sair, ir em festinhas, ver as amigas fazendo isso. É normal”, afirmou, ao lembrar os sonhos e a rotina de Daiane. O caso a fez repensar o mundo e reafirmou seu compromisso com o júri popular: “Eu fui com o espírito de que tinha que condenar essa pessoa. Não podia deixar passar”.

Emocionada, relembrou a chegada da comunidade indígena ao tribunal, com meninas enfeitadas e cantos em honra a Daiane. “Daiane vive. Porque ela vive para contar sua história. Ela vive para que o que aconteceu com ela não se repita.” A promotora comparou o caso ao da Boate Kiss, também marcante em sua trajetória, reforçando a necessidade de transformação profunda nas relações sociais e institucionais com os povos indígenas. “Nós somos vocês. Somos um país feito de miscigenação.”
Além do ineditismo da tipificação, Callegari destacou a importância da presença de uma tradutora indígena no julgamento, o que, segundo ela, garantiu respeito às formas de expressão da comunidade kaingang. “Foi essencial.”
Para além da justiça
Ainda relembrando o julgamento, a promotora disse que um dos momentos mais fortes foi o depoimento da mãe de Daiane, que contou não saber a quem recorrer quando a filha desapareceu. “Essa pessoa não se sente sujeita de direitos.” Após a condenação, a mãe declarou: “Afinal, nós não nos sentimos iguais a vocês”. Para a promotora, a frase expressa o descrédito da população indígena no sistema de justiça e o poder simbólico do reconhecimento legal.
Callegari também falou sobre o impacto de lidar com a dor das famílias. Relatou que, ao perguntar à mãe de Daiane sobre as roupas da filha, ouviu que ainda estavam guardadas: “Ela ainda esperava a filha voltar.” Também mencionou as barreiras enfrentadas por mulheres no sistema jurídico, citando o machismo presente inclusive entre colegas. “Tu é muito boa no que tu faz, apesar de ser mulher.”
Concluindo sua fala, a promotora reforçou a urgência de ampliar vozes. “É muito triste ouvir que as mulheres indígenas continuam sem saber a quem recorrer. Por isso precisamos estar nesses lugares, ser voz nesses lugares. Nós, que podemos ser voz. Se a gente não fizer diferença, quem vai fazer?”
No ano em que Daiane foi assassinada, em 2021, foram registrados 96 feminicídios no Rio Grande do Sul, segundo o Observatório da Violência contra a Mulher, da Secretaria da Segurança Pública.
Segundo o Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas no Brasil, os casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas aumentaram 500% entre 2003 e 2022, totalizando 394 mortes. O levantamento foi desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas.

Do luto à luta
A técnica em enfermagem e liderança indígena Regina Sales compartilhou a dor e a mobilização que originaram o GT Guarita Pela Vida, criado um ano após o assassinato de Daiane. “Cada vez que a gente toca nesse assunto, a gente se emociona”, afirmou.
Criada na aldeia, Sales relatou as dificuldades enfrentadas por mulheres indígenas para buscar ajuda em casos de violência. Agradeceu o trabalho da promotora e disse que, hoje, a comunidade sabe onde pedir socorro: “Muito grata. Através disso, a gente sabe onde deve ir”.
Segundo ela, o GT nasceu num momento de dor, mas com o objetivo de dar um basta à violência contra mulheres indígenas. “Pode ser que pareça tarde, mas nunca é tarde para recomeçar.” O grupo atua como rede de apoio e fortalecimento, orientando meninas, mulheres adultas e idosas sobre seus direitos. “Nós estamos ali servindo de apoio como GT, como uma rede de apoio mesmo.” Embora reconheça que a violência não vai cessar por completo, acredita que é possível enfrentar a impunidade: “Quem comete precisa responder”.
O GT também realiza ações de prevenção nas aldeias, com foco em educação e conscientização. “Nos sentimos fortalecidas em saber que não estamos sozinhas.” Para Sales, a rede criada é uma ferramenta concreta de proteção e conhecimento. “Todas nós fizemos essa rede.” A liderança reforça a importância de proteger meninos e meninas, alertando as famílias sobre as múltiplas formas de violência: “Todos sofrem essas violências”.
Sales comentou ainda o impacto de encontrar o corpo de Daiane, como profissional de saúde. “Toda vez que tocam nesse assunto, é muito dolorido pra mim.” A técnica conhecia Daiane como uma menina alegre, presente na rotina da comunidade. “Quando eu vi aquilo… eu me perdi.” A luta, afirma, é também por outras meninas desaparecidas ou assassinadas. “Hoje, só no município de Redentora, temos 13 pedidos de medida protetiva no território indígena.” Com esperança, conclui: “Esse grupo de mulheres que se levantou no Guarita é um início. E que seja o fim de muitas violências”.
Realizado entre os dias 26 e 27 de junho, o seminário foi uma parceria do Coletivo Feminino Plural com o Niem/Ufrgs, a Campanha Levante Feminista contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio, o Observatório Lupa Feminista e o Querela Jornalistas Feministas.

Caso Daiane – Justiça aumenta pena do feminicida
Em 14 de fevereiro o réu, o agricultor Dieison Corrêa Zandavalli, homem branco, de 36 anos, foi condenado a 36 anos e 6 meses, sem contabilizar na sentença os 3 anos que ele já está preso desde o início das investigações, por um júri formado por quatro mulheres e três homens, pelo assassinato de Daiane Gria Salés. A sentença foi dada pela juíza de direito Ezequiela Basso Bernardi Possani. Tanto o Ministério Público quanto a defesa do réu apresentaram recurso de apelação contra a sentença, questionando exclusivamente o tamanho das penas impostas pela Justiça.
Nas alegações da acusação, o Ministério Público pediu o aumento das penas, solicitando que o juiz aplique um acréscimo de um sexto nas etapas de fixação da pena-base e nas agravantes reconhecidas.
Já a defesa, no caso do crime contra a vida, pediu a redução da pena-base para 13 anos, alegando a existência de circunstâncias judiciais favoráveis. Também solicitou que o impacto das agravantes na pena fosse limitado a um terço. No que diz respeito ao crime de estupro de vulnerável, os advogados pediram a fixação da pena-base no mínimo legal e o afastamento das agravantes relacionadas ao motivo torpe e à dissimulação. Além disso, a defesa pediu que o réu possa cumprir a pena em regime semiaberto e que seja concedido o benefício da assistência judiciária gratuita.
Nesta segunda-feira (30) o Tribunal de Justiça, da 1ª Câmara Especial Criminal, julgou os recursos da defesa e do Ministério Público e aumentou a pena para 47 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, a ser cumprida em regime inicialmente fechado. Também indeferiu o pedido da defesa para concessão de gratuidade da justiça, argumentando que o réu não comprovou situação de hipossuficiência financeira, além de estar representado por advogada particular.
