Para se fazer justiça, é necessário o trabalho de centenas de profissionais servidores do Poder Judiciário. Em áreas sensíveis como adoção, família, internações, e direitos da infância e da juventude, há a atuação de especialistas que subsidiam o juiz, buscando a melhor solução para o indivíduo em sofrimento. O trabalho nesses campos, por sua própria complexidade, frequentemente envolve situações de tensão e conflito, exigindo dos profissionais preparo técnico e emocional.
Os psicólogos estão entre esses servidores, com o papel de avaliar, verificar, dialogar e investigar o contexto dos processos, emitindo pareceres essenciais. Para tal, é necessário o comparecimento nos locais de ocorrência dos fatos, bem como entrevistas presenciais. Devido à própria natureza das questões, as visitas são realizadas em sua grande maioria em regiões de vulnerabilidade socioeconômica e presença marcante de criminalidade.
“‘Vou correr risco’. É o que penso cada vez que tenho ordem para realizar uma visita à domicílio. O sentimento é de apreensão, medo”, conta G. F. M., psicóloga servidora no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Dentre as muitas situações de risco pelas quais passou, ela destaca o dia em que chegou a uma comunidade e não conseguiu entrar.
“Estava acontecendo um tiroteio, e a polícia nos avisou para não subirmos. E uma coisa não me saiu da cabeça: e se tivéssemos chegado um pouco antes e entrado?”, questiona-se.
Assim, é inegável dizer que os psicólogos servidores da Justiça realizam um trabalho de risco permanente. O Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado de Minas Gerais (SERJUSMIG) tem como uma de suas missões fortalecer estes e demais profissionais que realizam visitas e diligências externas, pautando junto ao TJMG a criação de um espaço de escuta permanente e construção de métodos e ferramentas de prevenção e segurança.
“O risco é característico destas famílias que a gente atende. E nunca recebemos um treinamento, não tem uma orientação, nada. A gente vai aprendendo com o colega mais velho”, lamenta J. L. S., psicóloga da Vara da Infância e da Juventude, no trabalho há 18 anos.
Ela cita ‘dicas’ que recebeu de outros servidores, ou aprendeu com a experiência. Às sextas não é bom entrar nas comunidades, pois é dia de entrega de drogas e há mais chance de conflitos; também não é indicado o uso de camisa preta, já que é a mesma vestimenta dos policiais.
“As comunidades têm uma cultura específica, e deveríamos aprender sobre ela e como agir da melhor forma. Recebemos periculosidade porque há claramente um risco na minha atuação profissional, mas a maneira que eu me exponho a esse risco poderia ser minimizada com treinamento e formação”, destaca J. L..
Casos expõem gravidade da situação
A servidora L. M. V. integrou por um tempo a Vara Infracional do TJMG e relata que presenciou atos de violência entre jovens internados em Centros Socioeducativos, inclusive como alvo das ações agressivas.
“Eu e outra colega psicóloga estávamos no Centro Socioeducativo de Justinópolis para atendimento de adolescentes quando uns quatro deles se mostraram bastante irritados e intimidadores, se reuniram e “vieram pra cima” de nós questionando sobre os relatórios que faríamos. A situação só se normalizou depois que os agentes de segurança apareceram”, conta L., que lembra também quando teve que lidar com uma rebelião de jovens. “Eles começaram a jogar pedras na janela da sala de atendimento. Foi muito tenso e tivemos o receio de sermos feitas reféns”, expõe.
Na Justiça, os processos de destituição do poder familiar são tratados na Vara da Infância e da Juventude, onde o parecer dos psicólogos tem grande relevância na decisão final. A servidora Ana Flávia Ferreira de Almeida Santana foi agredida por uma mãe após o comunicado da perda da guarda de sua filha.
“Logo após a publicação da sentença, a genitora dirigiu-se ao setor técnico, demonstrando extremo descontrole emocional. Ela invadiu a sala de atendimento, arremessou uma mesa contra mim e partiu fisicamente para a agressão. Uma colega de trabalho, que estava presente no local, conseguiu intervir fisicamente, segurando a agressora por tempo suficiente para que eu conseguisse sair da sala e correr em direção aos seguranças”, narra Ana Flávia. Ela confirma que agressão ou ameaças são frequentes no trabalho.
As entrevistas de avaliação podem ser momentos de exposição dos profissionais psicólogos a esse tipo de violência. Um adolescente em cumprimento de medida de liberdade assistida e em tratamento de saúde mental foi atendido pela servidora S. M. A. no setor técnico do TJMG, onde expressou sua insatisfação e assustou aos presentes.
“Durante o atendimento, o adolescente levantou da cadeira e deu um soco forte no vidro da janela, que por sorte não quebrou. Já solicitamos ao TJMG a colocação de telas nas janelas, mas não obtivemos retorno”, preocupa-se.
As realizações dos atendimentos individuais podem ocorrer também na residência do indivíduo, o que aumenta os riscos aos servidores e servidoras. Na disputa pela guarda dos filhos entre os genitores, a J. L. S., psicóloga da Vara da Infância e da Juventude, foi escalada para verificar as condições da residência do pai, que morava sozinho.
“Eu não sabia que ele era psicótico, não foi informado. Quando eu fui ao local, ele estava num quadro delirante. Me fez ameaças, disse que pediria à ‘satanás para acabar comigo’, em delírio, e eu estava sozinha com ele. A informação sobre a psicose não constava no processo, se não talvez eu nem iria ou teria tomado precauções”, aponta J. L..
Essas experiências representam situações de extremo risco à integridade física e emocional dos servidores, e demonstram as condições adversas e inseguras enfrentadas no cumprimento de suas atribuições funcionais.
“Um amigo militar me perguntou se recebemos treinamento para entrar em uma área de perigo como essa. Não, nunca tive noção do que posso ou não fazer em um lugar desse, quais são as regras, como agir em determinadas situações. Precisamos de protocolos, de políticas de proteção e prevenção”, alerta a servidora J. L. S..
Sobrecarga e defasagem
A insegurança e estresse que acomete os psicólogos do Tribunal se tornam ainda mais expressivos quando estes profissionais têm que lidar diariamente com a sobrecarga de trabalho.
Equipes reduzidas, número crescente de casos, prazos exíguos para entrega dos relatórios, desvalorização do trabalho detalhado. Estas são as principais denúncias de quem vive o dia a dia de trabalho na Justiça mineira. O crescimento do trabalho da Justiça e a aposentadoria sem reposição resultaram em alto déficit de servidores em todo o TJMG.
“No meu setor tinham dezenove psicólogos, e baixou pra seis. Atualmente já chegaram alguns, mas ainda estamos com defasagem de dez profissionais. Eu não estou conseguindo atender uma demanda simples de entrevista”, afirma G. F. M., servidora lotada em Belo Horizonte. Ela explica que em 2019 houve aposentadorias em massa, quando o setor perdeu psicólogos e nunca mais teve reposição total.
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O Serjusmig é defensor inegável do concurso público no país, como instrumento isonômico e impessoal de definição de novos servidores. Anos de luta e compromisso do sindicato garantiram a homologação do concurso do Edital 01/2022, e, em abril, a nomeação de 23 novos psicólogos em todo o estado.
Mas o cenário ainda preocupa. Dos 169 psicólogos previstos para o quadro do Tribunal de Justiça de MG pela Resolução 954/2020, somente 129 estão ocupados. “A previsão foi elaborada em 2020, e já com alguma defasagem. De lá pra cá, muita coisa mudou na Justiça do estado”, alerta Rui Viana, vice-presidente do Serjusmig.
Junto às demais entidades, o Serjusmig está na luta para que a saúde das servidoras e dos servidores do Judiciário mineiro não fique comprometida pelo déficit do quadro de pessoal. Por isso, os sindicatos vão seguir cobrando do TJMG a nomeação dos demais cargos, e a realização de novos certames.
Relatos que fortalecem
Por meio de ofícios e reuniões, o Serjusmig defende a garantia de espaços de escuta no Tribunal e a construção de políticas de segurança para os cargos de assistentes sociais, comissários da infância e da juventude e psicólogos.
Apesar da criação de um Grupo de Trabalho para tratar das dificuldades sofridas pelos oficiais de justiça de Minas Gerais, o Tribunal ainda não formalizou um espaço de escuta voltado aos demais profissionais que enfrentam problemas semelhantes no trabalho externo. Por isso, o Serjusmig segue cobrando da administração do TJMG a ampliação dessa escuta institucional, a criação de políticas de proteção e a valorização de todos os servidores expostos a riscos no exercício da função.
Para fortalecer a luta, sindicato orienta os psicólogos para fazer o registro das ocorrências novas e anteriores por meio do Boletim de Ocorrência de Risco no Trabalho. O documento permite o mapeamento das ocorrências, o fortalecimento das reivindicações por mais segurança e a construção de estratégias coletivas de proteção. A participação dos servidores e servidoras com tal atuação é fundamental para o sucesso da iniciativa. Quanto mais relatos forem registrados, maior força terá a luta por melhores condições de trabalho. O boletim deve ser enviado para [email protected].