“Quando o valor do reciclado cai, é a comida que some de casa”. O desabafo é de Maria das Graças Marçal, mais conhecida como Dona Geralda, fundadora da Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis de Belo Horizonte (Asmare). A fala resume bem a realidade enfrentada por quem vive da reciclagem e encara a fome como uma ameaça constante.
Foi para enfrentar essa realidade que nasceu, há um ano, a Cozinha Solidária Maria Brás, fruto da parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a própria Asmare. Desde então, mais de 7 mil refeições já foram distribuídas gratuitamente aos trabalhadores e trabalhadoras da reciclagem na capital mineira. Na quarta-feira (2), um encontro celebrou o aniversário da iniciativa.
Instalada no galpão da associação, na avenida do Contorno, região central de Belo Horizonte, a cozinha funciona atualmente duas vezes por semana e oferece alimentos livres de agrotóxicos, produzidos por assentamentos da reforma agrária. O cardápio é preparado por cozinheiras do MST e inclui arroz orgânico, feijão, legumes, verduras agroecológicas e carnes.
“É uma aliança entre campo e cidade. Os alimentos vêm das cooperativas do MST, que cuidam da terra e não usam veneno. E aqui, na cidade, quem cuida do meio ambiente são os catadores, que reciclam toneladas de resíduos por dia. É comida com dignidade para quem tem enfrentado, muitas vezes, a invisibilidade e a fome”, explica Bernardo Vaz, um dos coordenadores da cozinha.
Almoço a R$ 5,75: quando a solidariedade vira política pública
Com a alta no preço da comida e o baixo valor pago pelo material reciclado, muitos catadores não conseguem bancar sequer uma marmita no centro da capital, onde o valor médio gira em torno de R$ 20. A cozinha da Asmare, por outro lado, consegue preparar cada refeição por R$ 5,75, com ajuda do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), doações e apoio das cooperativas do MST.
Além de oferecer uma refeição nutritiva, a cozinha também proporciona um espaço de acolhimento, cuidado e descanso durante o expediente.
“Tem dia que a gente não tem um real no bolso, mas a comida está garantida aqui. Isso muda tudo”, contou um dos catadores presentes no almoço de comemoração.
De acordo com um levantamento de 2022 feito por universidades como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de São Paulo (USP), junto à prefeitura de BH, mais da metade dos lares da capital mineira sofrem com algum nível de insegurança alimentar.
A situação é ainda mais grave entre os domicílios chefiados por pessoas negras: enquanto 48,8% dos lares comandados por brancos estão em segurança alimentar, entre pessoas pretas esse número cai para 31,6%.
“A Cozinha da Asmare é uma resposta concreta à ausência de políticas públicas para um setor invisibilizado. Ela mostra que é possível garantir comida de verdade, sem veneno, feita com cuidado e respeito aos trabalhadores”, afirma em nota Elis Mina Seraya Borde, professora da Faculdade de Medicina da UFMG e pesquisadora do Observatório de Saúde Urbana (OSUBH).
Para Silvia Contreras, do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (COMUSAN), o projeto também é símbolo de resistência.
“O país enfrentou anos de desmontes das políticas de combate à fome, principalmente durante a pandemia. O que vemos aqui é o povo se organizando para sobreviver e lutar”, conta.
Próximo passo: garantir comida todos os dias
A meta agora é ousada: garantir alimentação de segunda a sexta-feira para todos os 120 catadores associados à Asmare. Segundo o MST, isso exigiria um orçamento anual de R$ 240 mil — cerca de R$ 8,50 por refeição. O valor, segundo os organizadores, é viável e pode ser coberto por parcerias com o poder público.
Durante a celebração de um ano da cozinha, estiveram presentes representantes do Ministério Público, da prefeitura de BH, da UFMG, da RedeSol, da Conab e parlamentares municipais. Todos foram convidados a somar com a iniciativa.
“O impacto social é imenso e o custo, muito baixo. O Estado tem recursos para isso”, reforça em nota Priscila Araújo, da campanha Mãos Solidárias, do MST.
Eduardo Dumont, superintendente da Conab em Minas Gerais, reforçou, em nota, o compromisso do governo federal com o projeto.
“O governo Lula já tirou o Brasil do mapa da fome uma vez e está fazendo isso de novo. Vamos ampliar esse apoio e garantir que mais cozinhas populares como essa floresçam no país”.