“Poesia é não pagar aluguel no Brasil”. Esse frase pode ser encarada como um resumo certeiro de Degola, novo livro da jovem escritora, jornalista e antropóloga Monique Malcher. A obra ficcional conta a história de Sol, uma menina de Manaus (AM), que vive em uma ocupação de terra.
A obra será lançada oficialmente no dia 29 de julho, mas já está em pré-venda nos sites da Companhia das Letras e da Amazon. Ao Conversa Bem Viver, a autora conta que, a partir da narrativa sobre as vivências de uma família, buscou retratar traços de comunidades e de uma realidade social que persiste no Brasil até os dias de hoje.
“Falamos sobre um livro que diz de uma dor individual, mas que é também coletiva. Não tem como contar a história de uma família em uma ocupação e não entender que aquela história também é a de muitas famílias, que aquela narradora, aquela criança, também poderia ser diversas outras meninas ou mulheres que cresceram em ocupações”, explica Malcher.
A escritora é considerada um dos nomes importantes da nova literatura brasileira, que lança mão da mistura da realidade com elementos ficcionais para revelar aspectos profundos das relações humanas, como o atravessamento da sociedade por diversas injustiças sociais. Ela também é a autora de Flor de Gume, livro de contos que retrata as vivências femininas no estado do Pará.
Assim como a personagem principal de Degola, Malcher também nasceu no Norte do país e viveu em uma ocupação com sua mãe, uma das personagens entrevistadas para a construção do livro. Para a produção do texto ficcional, ela também desenvolveu uma longa pesquisa histórica, além de conversar com personagens reais.
“Como escritora, consigo ver aquilo que me incomoda, mas eu não sou liberta até ver que outras pessoas estão libertas. Eu não me sinto confortável se eu sei que muitas pessoas no Norte ainda moram em ocupação, sem saneamento básico”, destaca.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Conte um pouco sobre a história tratada no livro.
Monique Malcher – Eu tinha uma vontade muito grande de escrever um livro que se passasse em uma ocupação no Amazonas, especificamente em Manaus, onde se passa o livro. Porque, quando eu era criança, eu morei numa ocupação, mas tenho poucas lembranças. Eu devia ter seis ou sete anos. Mas esse era um tema que eu queria muito contar.
O livro se passa na década de 1990, mas ainda é um tema corrente no Brasil inteiro. E eu suspeito que tenhamos poucos livros de ficção que falem de ocupações, especificamente no Norte do país. Na minha pesquisa, pelo menos, eu não encontrei, mas deixei inclusive aberto para que as pessoas me enviem, caso conheçam, porque é importante fazer esse levantamento.
Ao mesmo tempo, temos muitos trabalhos acadêmicos, muitas pesquisas sobre o assunto e diversos pesquisadores debruçados sobre isso. Então, eu fui para a área acadêmica, mas também fiz entrevistas com pessoas que já tinham morado em ocupações, sempre deixando claro que as suas identidades não seriam reveladas.
Essas pessoas foram me contando várias coisas que viveram. Uma delas foi a minha mãe, que acabei entrevistando. Como eu trabalho com ficção, mas também com trabalho de campo, porque também sou antropóloga e jornalista, também gosto de fazer pesquisas históricas e tudo mais. Isso é importante para mim.
Então, a Sol, personagem principal da obra, surgiu da ideia de que eu, no Flor de Gume, o meu livro anterior, já tinha uma narradora que era uma criança e que ia crescendo por meio do livro, mesmo ele sendo de contos. Era a mesma narradora na maioria dos contos.
No Degola, a minha vontade era seguir com uma narradora criança, com uma narração na infância e também na fase adulta, para que tivéssemos a visão de uma mulher adulta que cresceu numa ocupação. O que ela lembra, como ela sentiu, etc.
Falamos sobre um livro que diz de uma dor individual, mas que é também coletiva. Porque não tem como contar a história de uma família em uma ocupação e não entender que aquela história também é a de muitas famílias, que aquela narradora, aquela criança, também poderia ser diversas outras meninas ou mulheres que cresceram em ocupações.
Então, a minha vontade com o Degola não era simplesmente contar a história de uma comunidade, mas era contar a história de como era essa infância numa ocupação e, consequentemente, contar a história da comunidade, mas a partir da perspectiva de uma menina.
É uma forma de amplificar as vozes que muitas vezes não são ouvidas, que são as das crianças, das meninas.
Como você também tem uma trajetória marcada pela vivência em ocupação, o livro também traz traços autobiográficos?
Eu diria que, em Degola, o único traço autobiográfico é o fato de eu e minha mãe termos morado em uma ocupação. Mas a história inteira não tem nada a ver com a nossa história, até porque eu não tenho muitas lembranças, tenho mais flashes de imagens daquele lugar. Por isso, eu queria muito ouvir outras vozes.
Então, eu me dediquei a criar os personagens apoiada em outras vozes, em outras histórias. Degola traz muitas histórias também de recortes de jornais, de outros ocupantes, líderes comunitários, etc.
Por exemplo, tem uma líder comunitária da igreja, que aparece no livro, que realmente existiu, a irmã Helena. Ela era de Manaus e aparece no livro com um outro nome, uma outra história, mas foi uma forma de homenagear aquela mulher que foi importante para muitas famílias conseguirem sua terra, sua casa.
Eu estava mais focada nisso e fico feliz de isso ter feito parte da minha história, mas as lembranças eram muito vagas, por isso, não considero ele autobiográfico, a não ser por ser uma pessoa que realmente morou num lugar de ocupação.
Assim como em Flor de Gume, muitas pessoas me perguntam: “nossa, você é aquela menina que teve um pai muito violento?”E eu digo: “olha, meu pai não é o pai do livro, mas, na condição de mulher, com certeza, eu passei por várias violências que talvez vão aparecer no livro”.
Eu acho que o questionamento sobre a autobiografia, de alguma forma, vai sempre aparecer quando é uma mulher escrevendo ou uma pessoa LGBT, porque estamos completamente envolvidas, devido às questões que nos perpassam. O nosso olhar é o olhar para o incômodo, para aquilo que nos incomoda, não só na nossa história, porque a história do outro também é a nossa história.
Como escritora, consigo ver aquilo que me incomoda, mas eu não sou liberta até ver que outras pessoas estão libertas. Eu não me sinto confortável se eu sei que muitas pessoas no Norte ainda moram em ocupação, sem saneamento básico. Mesmo com toda a luta e todo o empoderamento possível que os ocupantes tenham, ainda assim, não recebem aquilo que é de direito, um lugar para morar, uma terra para plantar.
Ao longo da trama, Sol busca superar coisas que foram impostas a ela na infância. Como essa narrativa é construída no livro?
Tem a questão da Sol, na fase adulta, aprendendo a nadar. Ela tem um irmão mais jovem que acaba morrendo afogado. Então, ela se sente culpada e a culpam por essa morte, de alguma forma. Assim, nadar é algo que se torna um trauma.
Sabemos que, muitas vezes, as meninas mais velhas ficam encarregadas de cuidar dos seus irmãos mais novos — mulheres recebem responsabilidades de cuidados muito cedo. Quando ela rememora essa história toda, isso se passa em dois tempos, um na ocupação e um enquanto ela aprende a nadar nos contando o que aconteceu.
Para mim, era muito importante a natação nesse lugar do esporte, do corpo, mas como um lugar também de transformação de um trauma, ao colocar o corpo em movimento.
A gente sabe que a natação, por exemplo, é um esporte que não é tão acessível, mas hoje a gente tem lugares comunitários em que as pessoas podem aprender a nadar e tudo mais.
Esse é um outro debate muito importante, sobre lugares que o corpo pode acessar, experimentar e experienciar. Isso era muito importante para mim. E eu fui uma mulher que aprendeu também a nadar na fase adulta.
Isso me marcou muito e, enquanto eu estava escrevendo, fui descobrindo várias outras mulheres que também aprenderam a nadar na fase adulta, por diversos motivos, como acesso, falta de grana ou imposição familiar.
Para mim, era importante também o corpo da mulher, do acesso a um lugar de água, um ato que também é de sobrevivência. Você saber nadar também é um ato de sobrevivência, para além da liberdade.
Você poderia ler um trecho do livro?
Eu trouxe um trecho em que a Sol fala um pouco sobre o pai, que se chama Alfredo.
“Não fomos morar de cara no terreno da ocupação. A cobaia foi meu pai. Nos primeiros dias, ele, com a ajuda de Alison, levantou uma espécie de barracão.
O piso era apenas terra batida, como outros barracos, mas essa era uma palavra proibida. Alfredo chegou a bater na minha boca com a costa da mão quando eu disse: “Eu disse a tal palavra, barraco”. Alfredo sentia uma espécie de repulsa ao perceber que era igual às outras pessoas que ocupavam aquelas terras. Ele se importava com elas de verdade, mas queria ser alguém diferente.
Sempre quis ser um salvador, um profeta. Não queria ser visto como patrão, mas como Messias. Até hoje, me pergunto se ele quis mesmo formar família, ou se essa configuração era uma forma de não se sentir tão sozinho. Poder constantemente errar, sabendo que temos amparo incondicional. Que gostoso. Alguns homens querem mais do que poder aquisitivo, querem ser adorados como santos.
Alfredo construía uma relação de poder com as pessoas, sem elas perceberem que estavam sendo usadas para o sonho dele. Era descuidado com o resultado de seus atos, mas não consigo ver maldade intencional naquelas ações. Havia uma pureza no seu agir. E quando falo isso, não é coroando-o como santo, isso outras pessoas fizeram, pelo menos por um tempo. Ele realmente era bom para aquela ocupação.
Sempre morou em mim a inquietude diante da figura do santo. Você pede algo ao santo e oferece um agrado, caso o pedido se realize. Joana dizia que isso era benevolência. Eu chamo de transação comercial. Não é culpa do santo, é da sociedade que ergue o santo. Toma lá dá cá, irmão. Quem manda é o dinheiro.
Esse negócio do tempo ter sido da vida, só mesmo na boca de um poeta. E eu queria muito acreditar em poesia. Poesia é não pagar aluguel no Brasil. Papai Alfredo era um cara da classe trabalhadora, que achava que construindo um barraco gigante e começando a ajudar aquele povo todo, seria um líder comunitário.
Ver as pessoas felizes alimentavam a parte dele que dizia: “Eu presto, eu tenho valia, eu não sou um qualquer”. Quando o Altair erguesse o braço e dissesse no megafone: “Aqui quem fala é o governador, essa terra é do povo, Manauaras, povo do Norte. Quem é o líder aqui?” Ele estaria preparado para dizer sorrindo: “Sou eu, sou o líder”. “Qual seu nome, meu filho?” Alfredo Souza, seu criado.
Papai dizia que quando a gente se apresenta a uma autoridade sempre deve dizer depois do próprio nome, seu criado. Que foi assim que o pai dele ensinou como mostrar respeito. No meu primeiro dia de aula, na escola nova, a professora perguntou meu nome e eu: Sol, sou a criada. “Não, não diga isso, meu bem”. “É que eu respeito a senhora, professora”. “Nunca mais diga isso a ninguém, entendeu?” Fingi que entendi.
Quando penso nessa fantasia de meu pai, duas certezas coexistem. Que otário. Bom homem. Meu pai, meu amado pai”.
Como podemos acessar o livro?
O livro já está em pré-venda, nos sites da Companhia das Letras e da Amazon. O lançamento será no dia 29 de julho. Ou seja, a partir do dia 29, ele estará em todas as livrarias, mas a pré-venda já está acontecendo e você pode comprar o livro pelo site e receber em casa antes de todo mundo, bem rapidinho.
Pretendo fazer lançamentos em São Paulo, que é onde eu moro hoje. Também farei em Belém do Pará; em Santarém, que é a cidade onde eu nasci, no Oeste Paraense; no Rio de Janeiro; Brasília; Curitiba, etc.
Para ter acesso a todas as datas, basta entrar no meu perfil no Instagram. Pretendo rodar todo o Brasil. Se você tiver um evento de literatura e interesse em levar o Degola, basta mandar uma mensagem
Conversa Bem Viver
Em diferentes horários, de segunda a sexta-feira, o programa é transmitido na Rádio Super de Sorocaba (SP); Rádio Palermo (SP); Rádio Cantareira (SP); Rádio Interativa, de Senador Alexandre Costa (MA); Rádio Comunitária Malhada do Jatobá, de São João do Piauí (PI); Rádio Terra Livre (MST), de Abelardo Luz (SC); Rádio Timbira, de São Luís (MA); Rádio Terra Livre de Hulha Negra (RN), Rádio Camponesa, em Itapeva (SP), Rádio Onda FM, de Novo Cruzeiro (MG), Rádio Pife, de Brasília (DF), Rádio Cidade, de João Pessoa (PB), Rádio Palermo (SP), Rádio Torres Cidade (RS); Rádio Cantareira (SP); Rádio Keraz; Web Rádio Studio F; Rádio Seguros MA; Rádio Iguaçu FM; Rádio Unidade Digital ; Rádio Cidade Classic HIts; Playlisten; Rádio Cidade; Web Rádio Apocalipse; Rádio; Alternativa Sul FM; Alberto dos Anjos; Rádio Voz da Cidade; Rádio Nativa FM; Rádio News 77; Web Rádio Líder Baixio; Rádio Super Nova; Rádio Ribeirinha Libertadora; Uruguaiana FM; Serra Azul FM; Folha 390; Rádio Chapada FM; Rbn; Web Rádio Mombassom; Fogão 24 Horas; Web Rádio Brisa; Rádio Palermo; Rádio Web Estação Mirim; Rádio Líder; Nova Geração; Ana Terra FM; Rádio Metropolitana de Piracicaba; Rádio Alternativa FM; Rádio Web Torres Cidade; Objetiva Cast; DMnews Web Rádio; Criativa Web Rádio; Rádio Notícias; Topmix Digital MS; Rádio Oriental Sul; Mogiana Web; Rádio Atalaia FM Rio; Rádio Vila Mix; Web Rádio Palmeira; Web Rádio Travessia; Rádio Millennium; Rádio EsportesNet; Rádio Altura FM; Web Rádio Cidade; Rádio Viva a Vida; Rádio Regional Vale FM; Rádio Gerasom; Coruja Web; Vale do Tempo; Servo do Rei; Rádio Best Sound; Rádio Lagoa Azul; Rádio Show Livre; Web Rádio Sintonizando os Corações; Rádio Campos Belos; Rádio Mundial; Clic Rádio Porto Alegre; Web Rádio Rosana; Rádio Cidade Light; União FM; Rádio Araras FM; Rádios Educadora e Transamérica; Rádio Jerônimo; Web Rádio Imaculado Coração; Rede Líder Web; Rádio Club; Rede dos Trabalhadores; Angelu’Song; Web Rádio Nacional; Rádio SINTSEPANSA; Luz News; Montanha Rádio; Rede Vida Brasil; Rádio Broto FM; Rádio Campestre; Rádio Profética Gospel; Chip i7 FM; Rádio Breganejo; Rádio Web Live; Ldnews; Rádio Clube Campos Novos; Rádio Terra Viva; Rádio interativa; Cristofm.net; Rádio Master Net; Rádio Barreto Web; Radio RockChat; Rádio Happiness; Mex FM; Voadeira Rádio Web; Lully FM; Web Rádionin; Rádio Interação; Web Rádio Engeforest; Web Rádio Pentecoste; Web Rádio Liverock; Web Rádio Fatos; Rádio Augusto Barbosa Online; Super FM; Rádio Interação Arcoverde; Rádio; Independência Recife; Rádio Cidadania FM; Web Rádio 102; Web Rádio Fonte da Vida; Rádio Web Studio P; São José Web Rádio – Prados (MG); Webrádio Cultura de Santa Maria; Web Rádio Universo Livre; Rádio Villa; Rádio Farol FM; Viva FM; Rádio Interativa de Jequitinhonha; Estilo – WebRádio; Rede Nova Sat FM; Rádio Comunitária Impacto 87,9FM; Web Rádio DNA Brasil; Nova onda FM; Cabn; Leal FM; Rádio Itapetininga; Rádio Vidas; Primeflashits; Rádio Deus Vivo; Rádio Cuieiras FM; Rádio Comunitária Tupancy; Sete News; Moreno Rádio Web; Rádio Web Esperança; Vila Boa FM; Novataweb; Rural FM Web; Bela Vista Web; Rádio Senzala; Rádio Pagu; Rádio Santidade; M’ysa; Criativa FM de Capitólio; Rádio Nordeste da Bahia; Rádio Central; Rádio VHV; Cultura1 Web Rádio; Rádio da Rua; Web Music; Piedade FM; Rádio 94 FM Itararé; Rádio Luna Rio; Mar Azul FM; Rádio Web Piauí; Savic; Web Rádio Link; EG Link; Web Rádio Brasil Sertaneja; Web Rádio Sindviarios/CUT.
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