A campanha de grupos da esquerda contra o Congresso Nacional, na figura do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), alcançou um tamanho inédito nas redes sociais desde o início do atual mandato do presidente Lula (PT).
Uma pesquisa da Quaest mostrou que parlamentares governistas conseguiram superar, pela primeira vez, a oposição nas redes sociais durante os debates sobre justiça tributária nos últimos dias. De acordo com o documento, 119 deputados da base do governo fizeram 741 publicações sobre o tema, enquanto 112 parlamentares de oposição somaram 378 postagens. A esquerda, que historicamente tem menor presença digital frente à direita, foi mais ativa nesse episódio específico.
O alcance petista, porém, segue distante dos números obtidos pela direita em outras ocasiões. O vídeo mais assistido no Instagram do PT teve 14,6 milhões de visualizações, enquanto um vídeo do deputado Nikolas Ferreira, durante a crise do Pix, alcançou 200 milhões em apenas um dia.
Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital, considera que se trata de uma “contratendência” em relação à forma como a esquerda vinha se organizando nas redes sociais e que, portanto, ainda não é possível afirmar que os próximos embates digitais terão o mesmo sucesso.
“Isso foi uma contratendência. Na verdade, foi a primeira vez que inaugurou uma contratendência. O que vai definir se ela se mantém é se, nos próximos embates, isso se repetir. O fato é que a direita e a extrema direita vêm tendo primazia nas redes sociais há anos. Então, esse foi um marco da esquerda que a gente ainda vai ter que observar”, diz Foltran.
Em suas palavras, a esquerda ainda tem a tarefa de “conseguir trazer mensagens mais simples, fortes e mais radicais, porque isso facilita, tanto para a base social quanto para quem já está no campo progressista e concorda com essas ideias, articular um discurso coeso e transformar isso numa tarefa concreta”.
Um dos fatores que contribuíram para o alcance da campanha foi a fragilidade do bolsonarismo, que ficou escancarada com o baixo público da última manifestação de Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, no dia 29 de junho. De acordo com o Monitor e a ONG More in Common, cerca de 12,4 mil pessoas foram manifestar apoio ao ex-presidente, que pode ser preso até o fim do ano por tentativa de golpe de Estado. Há dois meses, a manifestação de Bolsonaro mobilizou 44,9 mil pessoas, o que coloca o público deste domingo em um patamar 72,3% menor.
Luiza Foltran afirma que o sucesso vem de uma combinação da fragilidade do bolsonarismo e da coesão da esquerda nas redes sociais em torno de um único tema: a justiça tributária e o impacto para os mais pobres. “A direita está muito fraca, passando mensagens contraditórias entre si, com lideranças batendo cabeça. Já a esquerda conseguiu entrar na semana com uma mensagem bem nítida.”
“Eles estão num momento de baixa, também, tanto da mobilização quanto da unidade no discurso que vinham fazendo. Estão perdendo coesão na própria base social, que está entrando em crise, justo num momento em que, na verdade, eles querem apoios. Então, há um cenário de fragmentação do lado de lá, enquanto a esquerda conseguiu, em torno de um tema difícil e polêmico, encontrar uma voz uníssona”, diz a pesquisadora.
Ineditismo
O ineditismo da ação, segundo Leonardo Martins Barbosa, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), também está no fato de ter sido o próprio governo federal o responsável por iniciar uma campanha de tamanho alcance redes sociais, e não a militância da esquerda, que já teve momentos de destaque como nas mobilizações contra o PL do Estupro e pelo fim da escala 6×1.
“Quem conseguiu colocar a própria agenda política foi o governo [através de uma mudança na estratégia de comunicação, liderada pelo Sidônio Palmeira]. Isso é muito relevante porque as quedas de popularidade do Lula eram significativas e estavam levando a boa parte dos partidos do centrão, mesmo os que têm lugar no governo, a começar a articular um apoio eventual à candidatura de Tarcísio [governador de São Paulo e aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)] no ano que vem”, diz Barbosa.
A ação ocorreu após os deputados derrubarem o decreto do Executivo sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que, segundo o governo federal, impactaria principalmente os mais ricos do país. A medida previa a taxação de operações de crédito, câmbio e aportes de mais de R$ 50 mil em previdências, o que reforçaria o caixa em R$ 20,5 bilhões em 2025 e em R$ 41 bilhões em 2026.
“O governo teve uma derrota muito forte na questão do IOF e, ao invés de simplesmente tentar conciliar acordos possíveis com o Congresso, resolveu fazer o enfrentamento”, diz o pesquisador. “Essa virada de chave foi tanto uma vitória em termos de comunicação política quanto de enfrentamento.
Campanha em números
Nas redes, a esquerda abraçou a derrota do governo e lançou campanhas atrelando o Congresso como “inimigo do povo” e pedindo a taxação dos mais ricos, nomeadamente os bancos, bilionários e bets, no grupo chamado “BBB”. Um levantamento da empresa de pesquisas Nexus mostrou que a campanha que cita a sigla alcançou 4,5 milhões de posts no Instagram, Facebook e principalmente no X (antigo Twitter).
Entre as frases mais publicadas, “Congresso da Mamata” foi citada 824.051 vezes entre os dias 23 de junho e 4 de julho, seguido por “Agora é a vez do povo”, mencionada 464.441 vezes. No mesmo período, Hugo Motta foi chamado de “traidor” 347.497 vezes. Nas mesmas redes sociais, o presidente da Câmara reagiu: “Quem alimenta o ‘nós contra eles’ acaba governando contra todos”, disse.
A pesquisa Quaest identificou que 61% das 4,4 milhões de menções ao Congresso nas redes sociais tinham tom crítico, enquanto apenas 11% eram favoráveis e 28% se mantinham neutras. Em 25 de junho, a hashtag #InimigosDoPovo teve 300 mil menções, logo após o Congresso derrubar o decreto IOF. Já entre os dias 30 de junho e 3 de julho, houve um novo pico de insatisfação, com críticas concentradas em Hugo Motta.
O alcance da campanha não descarta a necessidade de acordos futuros – como determinado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), depois que a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma ação contestando a decisão do Congresso –, mas reposiciona o governo federal na mesa de negociações. “Uma conversa como essa não pode acontecer com a faca no pescoço. Acho que o governo conseguiu mostrar que tem capacidade de mobilização para pautar sua agenda e não apenas a agenda do Congresso”, diz Leonardo Barbosa.
Partido Digital Bolsonarista (PDB)
Apesar do êxito na campanha, o pesquisador do Cebrap avalia que a esquerda ainda não domina as dinâmicas das redes sociais como a extrema direita. “A esquerda de uma maneira geral está começando a explorar esse mundo, mas ainda tem uma diferença bem significativa em relação à extrema direita bolsonarista”, que repousa no fato de que o “bolsonarismo nasceu digital”.
“É uma forma política que, independentemente do partido tradicional ao qual esses políticos são filiados, tem um tipo de organização e coesão dados por uma forma política inteiramente digital, que não é institucionalizado nem reconhecido dessa maneira, mas importante para a maneira como o bolsonarismo se organiza”, afirma Barbosa.
Uma pesquisa do Cebrap, em parceria com o Centro para Imaginação Crítica (CIC) e o Instituto Democracia em Xeque, nomeou esse fenômeno de Partido Digital Bolsonarista (PDB). “O bolsonarismo não é apenas um grupo de apoio a um líder, mas uma forma organizativa nascida no ambiente digital, que hackeia o sistema partidário tradicional para a disputa política eleitoral”, explica Ana Cláudia Chaves Teixeira, pesquisadora do CCI e professora de ciência política da Unicamp. “Ao operar em paralelo, o partido digital contorna as legislações eleitorais, modos de financiamento, bem como consegue operar de maneira nova a mobilização de sua base.”
Paralelamente a esse fenômeno, Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que o modelo tradicional de governabilidade, baseado na moderação do discurso, concessão de cargos e alianças com o centrão, vem mostrando sinais de esgotamento. Mesmo integrando o governo, partidos não têm cumprido acordos mínimos e até mesmo sabotam pautas, como foi o caso do IOF.
Diante desse cenário envolvendo um partido digital e um esgotamento no Congresso Nacional, a polarização surge como nova estratégia de engajamento e disputa política, especialmente nas redes sociais. “É essa adaptação que o governo parece estar fazendo para responder à implosão da governabilidade por parte do parlamento com uma investida de conexão com a sociedade O parlamento é um pilar, e a sociedade é outro, que pressiona o parlamento”, afirma Goulart. “É uma ação orquestrada que compreende a natureza das redes, com o disparo de conteúdos pela comunicação oficial do governo e vários influenciadores repercutindo na mesma linha”, explica a professora.