Mais uma vez acatamos sugestão dos leitores para tratar de um tema momentoso e aparentemente polêmico. Em artigos anteriores já abordamos aspectos deste tema, que agora tentaremos explicar melhor.
Só é polêmico porque não é resolvido regularmente, como já foi em Porto Alegre e outras localidades e porque não raro é abordado como grande solução para as recorrentes enchentes; que seria capaz de resolver alagamentos e inundações. Enfim, arroios e rios devem ser dragados (dessassoreados)?
Vamos por partes. Alagamento é o evento que ocorre quando a água da chuva não consegue escoar adequadamente após cair sobre uma área urbana, ficando acumulada por um tempo excessivo. Isto ocorre poque neste local não existe um sistema de drenagem urbana adequado ou porque o mesmo está obstruído. Na maioria das situações, estas águas precisam chegar a um arroio, que as levará para um rio. Se o arroio estiver obstruído, mesmo que toda a canalização anterior esteja em perfeitas condições, as águas e os esgotos ficarão retidos ou demorarão para escoar, ou seja, manter-se-á o alagamento.
Arroios são o principal componente da drenagem urbana
Os arroios são o principal componente da drenagem urbana, precisam dar vazão, além de serem um componente ambiental fundamental. Seu leito e sua calha não podem estar cheias de terras e lixos, que precisam ser regularmente retirados por dragagem adequada.
Já a inundação ocorre quando o mar (caso de grande parte do litoral dos Países Baixos), rio ou arroio ultrapassa sua calha indo inundar as suas regiões laterais. Para que isto não ocorra estas áreas inundáveis não devem ter ocupação ou devem possuir um sistema de proteção contra cheias.
A questão é: se aprofundar o leito de um rio, com dragagem ou alargar a sua calha, isto resolve por inteiro ou em parte a inundação? Qualquer proposta neste sentido precisa ser tecnicamente avaliada. Temos, em Porto Alegre e no Brasil, um dos melhores institutos do mundo, que com seus modelos já desenvolvidos, consegue projetar os resultados destas propostas: o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). A Universidade Federal de Rio Grande (Furg) também possui muita expertise e tem auxiliado a região sul do estado.
A dragagem de rios não é adequada para resolver inundações
O IPH/Ufrgs e a Furg, através de seus especialistas, já divulgaram suficientes informações para saber-se o quanto esta alternativa, fazer dragagem ou ampliar as calhas lateralmente de cursos maiores de água, é completamente inadequada e ineficiente para reduzir inundações. No caso da Bacia do Guaíba, a dragagem no Guaíba e/ou Lagoa dos Patos de 50 milhões de metros cúbicos de sedimentos (o que geraria um custo extraordinário, inadequado), reduziria somente em 10 cm a altura das águas. Já a dragagem nos afluentes do Guaíba, igualmente em muito pouco reduziria a altura das águas na região metropolitana, mas aumentaria a sua velocidade, aumentando o problema na região metropolitana. Outros aspectos negativos também precisam ser considerados ao realizar-se as grandes dragagens, como a possibilidade de queda dos barrancos e a modificação do meio ambiente aquático, atingindo suas fauna e flora. Ainda, como as águas dos rios movem-se constantemente, em maior ou menor velocidade, os sedimentos sobre o leito, são também arrastados. Assim, o espaço criado por uma dragagem pode ser novamente preenchido, tornando sem efeito a dragagem feita.
Este tema já foi estudado no passado, na década de 1960, quando engenheiros alemães, contratados pelo DNOS, em decorrência da inundação de 1941, estudaram alternativas para a proteção contra cheias de Porto Alegre. Uma destas alternativas propunha o “Canal Sinos-Gravataí”, que consistia em inverter o fluxo do Rio Gravataí, em direção ao mar, levando também as águas do Sinos. Uma obra gigantesca que não resolveria mais do que 15% da inundação em Porto Alegre.

Vias navegáveis precisam de manutenção permanente com dragagens
– Estas vias obviamente necessitam regularmente ter a sua conservação mantida (como qualquer via rodoviária ou ferroviária), reestabelendo-se o calado (profundidade navegável) necessário à passagem das embarcações. Aliás, nosso transporte bem que podia existir mais na modalidade fluvial. É usualmente feita com dragas que retiram os sedimentos do fundo da via, recolocando-os em outro ponto do rio. O projeto deste serviço necessita da batimetria da via, ou seja, da sua “topografia”, para saber-se a quantidade de material a ser removida e os impactos da atividade, que deve ser devidamente licenciada.
Retirada de areia deve ser feita com os devidos cuidados ambientais
– Retirada de areia e cascalho para a construção civil: obviamente também uma atividade necessária, está sendo feita usualmente por dragagens em locais específicos dos afluentes do Guaíba, onde é permitida. Requer um conjunto de cuidados ambientais, por isto deve ser licenciada. Esta dragagem foi proibida no Guaíba por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), cuja argumento de “grave impacto ambiental” foi acatado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em 2003. Posteriormente o TRF4 manteve a proibição da possibilidade de licenças pela Fepam até que fosse apresentado o Zoneameto Ecológico Econômico (ZEE), cuja atribuição legal cabe aos Comitês de Gerenciamento das Bacias Hidrográficas, no caso ao da Bacia do Guaíba. Os 24 Comitês de Bacias Hidrográficas existentes no Estado não conseguem atuar por absoluta falta de recursos negados pelo Governo do Estado. A estes comitês compete o diagnóstico e planejamento das águas no Estado.
O Delta do Jacuí está permanente formação
– Formação de bancos de areia na área do Delta: fato normal. O que são os deltas? Quando os rios desembocam suas águas no mar enfrentam as ondas e as marés marítimas. Daí, ao longo de anos, neste embate, alargam a foz, formando ilhas porque diminuem a velocidade de suas águas e descarregam os sedimentos que estão trazendo. Estes ambientes formados são muito ricos em diversidade ambiental. Temos deltas muito interessantes no mundo, como o do Rio Nilo junto ao Mar Mediterrâneo, formando uma extensão de 240 km, onde desenvolvem-se agricultura e outras atividades. No Brasil destacam-se dois deltas muito extraordinários, os dos rios Parnaíba e Amazonas. Na foz do Amazonas e junto a outros rios do Pará, encontramos a Ilha de Marajó. É a maior ilha fluviomarítima do mundo, com seus 40.100 quilômetros quadrados, equivalentes a soma da área da Holanda e Suíça. Possui 16 municípios, uma biodiversidade riquíssima e desenvolve o maior rebanho de búfalos do mundo.
Nós também possuímos um delta muito importante, que não possui este gigantismo, mas é o maior delta do mundo cuja foz encontra águas doces, no caso a Lagoa dos Patos. O nosso Delta do Jacuí, assim como os demais deltas, está em permanente formação, com a chegada de novos sedimentos e mesmo com o deslocamento de sedimentos já existentes, configurando ilhas já existentes ou novas formações como os bancos de areia que recentemente vimos. Obviamente que com um evento como o de maio de 2024, estes deslocamentos e redepósitos de sedimentos são maiores. Nosso delta é uma grande esponja, que retém parte do excesso das águas durante as cheias, liberando-as nas secas. Ajuda, mas como sabemos, não resolve as inundações em Porto Alegre e municípios vizinhos.
Prevenir é o melhor remédio
– Custa menos e dói muitos menos que os prejuízos causados. Basta recuperarmos a natureza e trabalhar com a sua parceria. Citamos algumas medidas essenciais para reduzir alagamentos e inundações: (i) jamais terras e lixos (especialmente plásticos) devem chegar às águas, o resultado são os assoreamentos, ressaltando ainda que lixos podem contaminar mais de trinta vezes do que esgotos sanitários, que também precisam ser tratados antes de retornarem aos arroios, rios e mares; (ii) árvores e vegetação em geral retém águas e captam gases de efeito estufa, sendo verdadeiras “máquinas ambientais”, no contexto de “cidade esponja” devem ser complementadas pela diferentes formas de bacias de amortecimento; (iii) as áreas laterais de quaisquer águas (arroios, rios, lagos, lagoas) devem ter a sua mata ciliar; (iii) arroios estão entre os fundamentais componentes ambientais do meio urbano, devem ter cuidados e recuperação permanente, não apenas o dessassoreamento como a recomposição das fauna e flora; (iv) novas áreas de risco devem ser evitadas com todos os esforços possíveis; (v) manutenção e aperfeiçoamento dos sistemas existentes é essencial como em tudo na vida; (vi) estas medidas somente se efetivam como medidas públicas governamentais, mas necessitam da participação da população, que deve ser incentivada com programas de educação ambiental.
Respondendo ao título “fazer dragagem ou não?”, sinteticamente, sempre levando em consideração as fundamentações acima:
– Sim, em arroios e pequenos rios urbanos, para prevenir alagamentos;
– Sim, em vias navegáveis, para a manutenção destas;
– Sim, na obtenção de areia e outros materiais da construção civil, em locais permitidos e licenciados;
– Não, como medida destinada à redução de inundações, a não ser diante de um projeto que demonstre robustamente a sua eficácia e viabilidade econômica.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.