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A Rede Transnacional de pesquisas sobre Maternidades destituídas, violadas e violentadas (REMA) é uma rede nacional e internacional de pesquisa, acolhimento e transmissão de saberes frente às violê...ver mais

Quando proteger vira agressão: o impacto invisível da destituição familiar nas crianças

Cena de Sarita sendo afastada da mãe adotiva em Vale Tudo, embora seja ficcional, ressoa com a realidade vivida por muitas crianças nas instituições brasileiras

Nayra de Oliveira Martins*, Francielly Alves ** e Thiago da Silva Santana***

Em um dos momentos mais sensíveis do remake de “Vale Tudo”, a pequena Sarita (Luara Telles), de apenas seis anos, reencontra sua mãe adotiva Laís (Lorena Lima), após ser levada pelo tio Marco Aurélio (Alexandre Nero), que a acusa de negligência. O motivo? Um acidente comum na infância: a menina teria caído de uma árvore. Ao rever Laís, Sarita corre em sua direção e grita emocionada: “mamãe Laís!”, em um gesto que revela, mais do que o vínculo afetivo entre ambas, a dor que acompanha as separações forçadas.

Na ficção, o debate sobre a suposta negligência se torna pano de fundo para decidir o destino da criança. Fora da tela, situações semelhantes ocorrem diariamente nos tribunais brasileiros, onde acusações de negligência — muitas vezes marcadas por interpretações subjetivas e desiguais — sustentam processos de Destituição do Poder Familiar (DPF). Nessas decisões, o conceito de “melhor interesse da criança” é frequentemente mobilizado como justificativa para a ruptura dos vínculos familiares. Mas até que ponto, em nome da proteção, a separação deixa de ser uma forma de agressão?

É justamente sobre essas contradições — entre proteção e ruptura, entre o discurso do cuidado e a prática da destituição — que nos propomos a refletir neste artigo.

A infância como território de disputa

O campo da infância é um terreno profundamente disputado do ponto de vista político, jurídico e moral. Em um contexto de crescente judicialização das relações familiares, o direito à convivência familiar e comunitária das crianças tornou-se objeto de intervenções que, ao invés de promoverem cuidado, ampliam desigualdades e aprofundam traumas.

Nos termos legais, a destituição do poder familiar é uma medida extrema prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aplicável quando se entende que a permanência da criança junto à família representa risco grave. No entanto, o que se observa é que essa medida tem sido aplicada de forma desproporcional a determinadas populações.

O cruzamento entre gênero, raça e classe social segue estruturando as decisões institucionais. Fazendo com que mulheres tenham suas capacidades maternas deslegitimadas, e as crianças, ao invés de protegidas, são privadas de vínculos fundamentais para seu desenvolvimento psíquico, emocional e cultural.

Dados apresentados pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) indicam que, entre 2005 e 2021, mais de 27 mil crianças tiveram seus vínculos parentais rompidos por decisão judicial. Quase metade dessas crianças tinha menos de seis anos. O recorte racial é ainda mais revelador: 54% eram negras ou pardas. A institucionalização prolongada também é uma realidade: no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 32,9% das crianças permanecem em unidades de acolhimento por mais de 18 meses, e 12% ficam mais de quatro anos, apesar da legislação estabelecer o caráter provisório dessas medidas.

Pesquisadores da área de infância, juventude e família, apontam ainda que as famílias mais destituídas ainda são aquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, apesar de estar estabelecido no artigo 23º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que “a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar”, reforçado posteriormente pela Lei Nº 12.010 de 2009 que enfatiza a importância da reintegração na família de origem deve ser prioridade.

Esses dados não apenas evidenciam o perfil social de quem mais sofre com a destituição, mas também questionam até que ponto o Estado tem garantido os direitos das crianças à convivência familiar, conforme estabelece o artigo 19º do ECA.

Esse panorama reforça a urgência de refletir criticamente sobre as práticas institucionais de proteção. O aumento expressivo do número de crianças acolhidas institucionalmente, aliado à baixa implementação de políticas de fortalecimento de vínculos familiares e de alternativas de cuidado em família extensa ou acolhedora, aponta para um cenário em que a violação de direitos é sistemática.

Embora o Plano Nacional do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, lançado em 2009, como uma diretriz nacional que orienta as políticas públicas voltadas à infância e estabelece que a preservação dos vínculos familiares deve ser prioridade absoluta,represente um marco importante no campo da proteção social, seus princípios ainda enfrentam enormes desafios para se concretizar na prática. Os efeitos dessas transformações ainda são insuficientes frente a um padrão institucional que, historicamente, priorizou a separação das crianças de suas famílias de origem.

A cultura institucional de responsabilizar, punir e retirar, ainda muito presente nos fluxos do sistema de justiça e nas políticas de proteção, segue reproduzindo uma política de afastamento, que deveria ter sido superada com a implementação do Plano.

A cena de Sarita — uma menina negra que passou por acolhimento institucional antes de ser adotada por suas mães — sendo afastada abruptamente da mãe adotiva em Vale Tudo, embora seja ficcional, ressoa com a realidade vivida por muitas crianças nas instituições de acolhimento brasileiras. Se, na novela, o grito de “mamãe Laís!” marca o rompimento abrupto de um vínculo afetivo, nas unidades reais de acolhimento esse grito se repete em outros tons, outras vozes, outros corpos.

O “melhor interesse da criança”?

“Eu quero a minha mãe, eu quero ela!”, o grito desesperado de uma menina rompe o silêncio institucional enquanto ela corre em direção ao portão, tentando impedir a saída de uma equipe visitante. Em prantos, ela se lança à frente, implorando para fugir. Uma psicóloga se aproxima, tenta contê-la e diz: “quer conversar sobre isso? Vamos falar sobre isso”. A resposta técnica tenta dar contorno a uma dor que irrompe de forma incontida. O que se ouve, no entanto, são vozes de ruptura, de ausência e de saudade, sentimentos que raramente encontram espaço nos autos processuais.

A cena, registrada pela pesquisadora e integrante da Rede Transnacional de Estudos sobre Maternidades Destituídas, Violadas e/ou Violentadas (REMA), ocorreu durante uma visita a uma instituição de acolhimento considerada referência no atendimento a crianças e adolescentes. Apesar da estrutura física e do suporte profissional qualificado, a experiência evidencia outras demandas mais profundas, nem sempre atendidas: aquelas que dizem respeito aos vínculos, às ausências e ao impacto subjetivo do afastamento familiar. Diante disso, cabe a pergunta que deve atravessar a política de cuidado: qual é o impacto do afastamento para crianças e adolescentes?

As decisões judiciais sobre destituição do poder familiar têm como base o argumento da proteção à criança e ao adolescente. No entanto, a expressão “melhor interesse da criança”, frequentemente se apresenta como uma categoria aberta a interpretações diversas e, muitas vezes, distantes da realidade social das famílias envolvidas.

A ideia de família, quando se trata da proteção à infância, é frequentemente acionada como critério moral e regulador. Espera-se dela não apenas cuidado e afeto, mas também a função de conduzir a criança à ordem, moldando comportamentos de acordo com normas sociais amplamente aceitas. Quando essa expectativa é frustrada — seja por ausência, dificuldades materiais ou estilos de cuidado não reconhecidos como legítimos — surgem rapidamente os julgamentos: a família passa a ser vista como fonte de risco, ou mesmo como culpada por um suposto “abandono moral” da criança.

Essa forma de olhar a família, mais do que técnica, é profundamente marcada por valores morais e idealizações. Como já apontou a antropóloga Maria Filomena Gregori, a responsabilização das famílias,especialmente das mães, por qualquer desvio de conduta ou vulnerabilidade da criança faz parte da história das políticas de proteção no Brasil. E ainda hoje, esse olhar moralizante permanece presente nos argumentos que sustentam afastamentos e decisões judiciais.

Ao invés de perguntar o que falta para fortalecer os vínculos familiares, muitas vezes o foco se volta para o que falta na família. E, diante dessa falta, a solução é, com frequência, o rompimento.

Mas se a separação da criança da sua família é, como se afirma, uma medida pensada em seu melhor interesse — como explicar os altos índices de evasão das instituições de acolhimento? Esses episódios são frequentemente tratados como um problema de segurança: crianças e adolescentes que “fogem”, se colocando em risco e desafiando a atuação da Rede de Proteção, composta por órgãos como o Ministério Público, Segurança Pública, Assistência Social, Sistema de Saúde, Conselho Tutelar e sociedade civil. Os dados sobre essas evasões são difíceis de acessar, por serem considerados sigilosos, mas sua existência é amplamente reconhecida por profissionais da área.

Nosso objetivo aqui é lançar uma pergunta que raramente ganha espaço nos documentos e relatórios: o que leva uma criança ou adolescente a fugir do lugar que supostamente deveria protegê-la? As respostas, claro, são múltiplas já que cada trajetória tem seus próprios contextos e dores. Mas é impossível não se perguntar: o que elas buscam ao evadir? Ou melhor: quem elas buscam?

Essas fugas, quando analisadas com atenção, nos obrigam a refletir: afinal, o que significa, na prática, “o melhor interesse da criança”? E onde exatamente esse interesse está localizado? A inquietação se intensifica quando nos deparamos com casos em que, após evadir, a criança retorna espontaneamente ao núcleo familiar de origem. Nesses casos, o questionamento se impõe: o que motivou o afastamento? E o que foi efetivamente feito para evitar que ele se concretizasse?

O enfrentamento à violência e à negligência é indispensável, mas ele precisa ser acompanhado de escuta, cuidado e investimento real em alternativas que não passem, de forma tão recorrente, pelo rompimento definitivo de vínculos familiares. Ainda assim, ao final desta seção, permanecem mais perguntas do que respostas — e talvez só as próprias crianças e adolescentes possam, de fato, nos contar o que é, para elas, o melhor interesse.

Quando o passado chama: o direito de saber de onde viemos

As decisões de afastamento e destituição do poder familiar costumam ser apresentadas como medidas protetivas e definitivas. No entanto, os efeitos dessas decisões atravessam o tempo. Em muitos casos, o que parece resolvido no processo judicial se transforma, anos depois, em lacuna aberta: um desejo de saber, de entender, de reencontrar.

É isso que vem à tona nos relatos de pessoas adultas que, após terem sido institucionalizadas ou adotadas, iniciam percursos em busca de suas histórias e vínculos familiares. Essas trajetórias, muitas vezes invisibilizadas, desafiam a ideia de que o rompimento dos laços de origem elimina automaticamente o pertencimento. O movimento Adotivas, formado por pessoas que foram adotadas e hoje reivindicam o direito de conhecer suas origens, é um exemplo potente dessa demanda. Por trás dessas buscas, há perguntas que seguem ecoando: Por que fui afastada? Houve tentativa de me manter com minha família? Quem tomou essa decisão por mim?

Essa busca é também reconhecida como um direito. Desde 2019, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), por meio do programa “Busca às Origens”, tem buscado garantir o acesso a informações sobre os processos de adoção para aqueles que desejam reconstruir sua história. Trata-se de uma iniciativa pioneira que dá concretude ao que está previsto no artigo 48º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no artigo 30º da Convenção de Haia de 1993: o direito da pessoa adotada a conhecer sua origem.

Historicamente, esse direito ganhou força após denúncias de adoções internacionais em larga escala, como nos anos 1980, quando países do Sul Global, como Brasil e Índia, figuravam entre os maiores exportadores de crianças para o exterior. O crescimento dessas práticas gerou críticas internacionais e levou à regulamentação mais rigorosa, especialmente quanto ao direito à identidade e ao acesso à história pregressa.

Ainda assim, no imaginário social brasileiro, o “segredo da adoção” permanece como tema sensível — como mostram tantas narrativas de novelas e filmes que retratam esse dilema como um drama familiar a ser ocultado, supostamente em nome do bem da criança. Mas o que esses movimentos atuais deixam evidente é que saber de onde se veio não é uma ameaça: é uma necessidade. Um direito, inclusive.

Ao trazer esses relatos para o debate, nos perguntamos: quando uma criança pede para voltar para casa, ou quando um adulto adotado vasculha documentos e arquivos atrás de suas origens, não é justamente o interesse dessa pessoa que está ali, pulsando? E então, retomamos a pergunta central deste artigo: afinal, o que é — e quem define — o melhor interesse da criança?

A luta institucional de mulheres negras

Em 1770, no Piauí, a escravizada Esperança Garcia, reconhecida em 2019 como a primeira advogada negra do estado, escreveu uma carta ao governador da capitania. Nela, denunciava os terríveis abusos sofridos por mulheres e crianças na Fazenda Algodões, localizada no sertão piauiense, oferecendo um testemunho angustiante de uma época marcada pela escravidão. Em particular, Esperança destacou uma das maiores crueldades da época: os abusos cometidos contra as crianças no contexto da escravidão.

Embora quase 250 anos separem o drama ficcional de Sarita e o caso de Esperança, a moralização da maternidade, as dores que elas carregam persistem, e as justificativas para as separações muitas vezes ecoam por diferentes períodos, revelando a continuidade das injustiças. A trajetória de Esperança embora distantes no tempo, revela um padrão histórico comum: a violação dos direitos das crianças à convivência familiar e comunitária, frequentemente acompanhada de um processo de criminalização e sexualização dessas infâncias e da deslegitimação das mulheres negras e pobres como cuidadoras legítimas de seus filhos. É quase como se o Estado estivesse dizendo a essas mulheres: você pode ter outros filhos, tudo bem perder esses.

A lógica que levou ao afastamento dos filhos de Esperança no século XVIII, é vista até os dias de hoje nos fundamentos de decisões judiciais, revela uma continuidade preocupante na forma como o Estado brasileiro administra os conflitos envolvendo famílias vulneráveis. Ele tem direção, ele sabe quem perseguir e sabe quem quer encontrar.

Revisitar as histórias como o caso de Esperança Garcia e os gritos de uma criança afastada de sua mãe nos oferece uma oportunidade crucial para refletirmos sobre as continuidades e rupturas nas formas de violência institucional praticadas pelo Estado brasileiro. Em ambos os casos, a convivência familiar e comunitária de seus filhos foi negada, e as justificativas para esses afastamentos, seja a “incapacidade moral” atribuída a Esperança no século XVIII, seja a “negligência”, revelam um padrão de criminalização da pobreza, racismo institucional e deslegitimação da maternidade negra, com consequências diretas para o futuro de seus filhos.

Negligência torna-se um crime fácil. Contra a negligência nem mesmo a fala das crianças podem ser prova de sua inexistência. A negligência pode ser compreendida a partir do macarrão instantâneo que as crianças comem no dia corrido. E pode não ser vista no pedido, na súplica das próprias crianças de não morar com determinado tutor. Uma pesquisa rápida sobre o assunto te informa sobre as diversas histórias neste sentido. A negligência, importante no ECA, pode ser desvirtuada pela interpretação rasa dos enveredados para um tipo de relação ou formação familiar que desprezam qualquer coisa que não seja a “família de bem”. Esse “desrespeito” ocorreu com Esperança.

Esse padrão, que atravessa séculos, não é um reflexo de práticas individuais ou de decisões isoladas, mas sim um elemento estrutural de um sistema que historicamente desconsidera e marginaliza mulheres-mães negras e suas famílias. A continuidade dessas violências nos desafia a repensar as narrativas oficiais e a história do país, pois as marcas da escravidão ainda estão presentes nas políticas públicas, nas decisões judiciais e nas práticas institucionais que moldam as vidas de negros e negras até hoje. O enfrentamento dessas questões exige um olhar crítico e atento, que vá além da reflexão sobre o passado, buscando compreender as consequências atuais dessas heranças e trabalhar para a verdadeira transformação social.

Entre o afastamento e a saudade

As histórias de afastamento familiar nos convidam a refletir sobre as formas persistentes de violência institucional praticadas pelo Estado brasileiro. As justificativas usadas para os afastamentos — seja a “incapacidade moral”, seja a “negligência” atribuída — revelam um padrão que deslegitima a maternidade e impacta diretamente a vida das crianças.

Mais do que uma separação física, o afastamento representa uma agressão simbólica e afetiva, que deixa marcas profundas que atravessam toda a vida. As vozes dessas crianças, sejam os gritos que ecoam nas instituições, sejam as buscas dos adultos por suas origens, denunciam que, além da proteção imediata, está em jogo o direito à convivência, à identidade e ao pertencimento.

É fundamental reforçar que o Estado precisa ampliar seu olhar para compreender essa complexidade e desenvolver políticas que valorizem o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, buscando alternativas à destituição sempre que possível. Afinal, garantir o “melhor interesse da criança” passa por escutar suas vozes, respeitar suas histórias e ampliar o olhar para além das justificativas oficiais, para que proteger não signifique também agredir.

*Nayra de Oliveira é Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense e integrante da REMA.

**Francielly Rocha é doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense e integrante da REMA.

***Thiago da Silva Santana é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, advogado e pesquisador da REMA. 

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Revisão: Mariana Pitasse.

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