É preciso afirmar: água não é mercadoria. Esta afirmação vem do legado histórico dos movimentos sociais e de favelas que precisam lutar para garantir um direito previsto na Constituição Federal e reconhecido, em 2010, pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um Direito Humano. A água tem sido cada vez mais objeto de disputa e lucro para o grande capital, que concretiza essa lógica com lucros exorbitantes enquanto falta água na periferia.
Temos como exemplo o caso da privatização, em 2021, desses serviços aqui no Rio de Janeiro. A prometida universalização do saneamento básico não se concretizou. O que vemos é a precarização no acesso água, com rompimentos de adutoras, desabastecimentos de inúmeras casas e o aumento abusivo das tarifas cobradas pelas empresas. Além disso, segundo pesquisadores da Rede de Vigilância popular em Saneamento e Saúde, somente a empresa Águas do Rio acumula no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mais de 80 mil processos, a maioria deles por cobranças abusivas ou indevidas. Tais situações atestam o fracasso da privatização no Rio de Janeiro do ponto de vista do interesse público.
Além disso, a concessão da Cedae representou a entrada de R$ 22,6 bilhões nos cofres públicos, o estado ficou com R$ 14,4 bilhões e os municípios que aderiram com R$ 7,6 bilhões. Diante disso, o governador afirmou que o estado e os municípios poderiam gastar o dinheiro como quisessem. Desprezou, no entanto, o princípio da transparência na gestão do dinheiro público. A venda de um patrimônio do Estado do Rio de Janeiro, fundamental para a garantia de um direito básico, não previu ferramentas para a devida fiscalização do uso desse dinheiro. Por isso, o Parlamento precisa se posicionar e questionar como foi gasto o dinheiro da venda da Cedae.
Agora, às vésperas de novas eleições, o governador Claudio Castro quer dar um além: anunciou a intenção de abrir o capital da Cedae. Na prática, será uma nova privatização, mas, dessa vez, de algo ainda mais estratégico para a segurança hídrica do estado: a produção, ou seja, a captação e o tratamento da água. Trata-se de um contrassenso em nível internacional. A tendência global é justamente a da reestatização dos serviços de saneamento básico. Enquanto mais de 267 cidades, como Paris e Berlim, retomaram o controle público, o governo fluminense quer entregar a produção da água para o setor privado. No centro dessa disputa para a reestatização está o debate sobre a própria natureza da água: ela é um direito ou uma mercadoria, um bem comum ou uma commodity?
Se a água vira mercadoria, o seu preço e disponibilidade seguem a lógica do mercado: 1) tarifas abusivas; 2) acesso apenas para quem pode pagar; 3) a crise climática vira oportunidade de negócio.
Se a água é reconhecida como direito, a sua gestão deve ser pública, universal e sustentável. O acesso tem que ser garantido a todos. Os investimentos precisam priorizar a universalização do saneamento. A segurança hídrica passa a ser uma política de estado. A atenção e o cuidado com os rios, as matas ciliares e a preservação terão de ser prioridades. O saneamento básico será entendido como questão de saúde pública.
A resistência popular contra todo esse processo de privatização da Cedae e a luta em defesa da garantia da água para o povo sempre existiram e persistem. É valoroso o trabalho de organização e mobilização de organizações como a Rede de Vigilância Popular em Saúde e Saneamento, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), dos sindicatos dos trabalhadores do setor de saneamento a exemplo do Sintsama, SindÁgua e Staecnon e de dezenas de organizações comunitárias, associações de moradores e coletivos de favelas.
De acordo com o Transnational Institute, nesse movimento global de reestatização os principais problemas apontados na gestão privada foram: 1) baixo desempenho de empresas privadas; 2) subinvestimento; 3) disputas sobre custos operacionais e aumentos de preços; 4) contas de água exorbitantes; 5) dificuldades no monitoramento de operadores privados; 6) falta de transparência financeira; 7) cortes de mão de obra e baixa qualidade do serviço.
Essa nova ameaça ao direito à água ocorre em um cenário de agravamento da crise climática e da insegurança hídrica do Estado do Rio de Janeiro. A crise climática impõe desafios extremos à segurança hídrica no estado, onde se verificam secas e enchentes que já comprometem a produção e a distribuição de água. Nesse contexto, a privatização da Cedae representa um risco social e ambiental. A gestão da água, desde a captação até o abastecimento, é processo estratégico, que deve priorizar o interesse público, o bem comum e a garantia de direitos fundamentais.
A commoditização da água pode subordinar a segurança hídrica a lógicas de lucro, que fragilizam a capacidade de o estado assegurar acesso equitativo e de investir em infraestrutura adaptada às mudanças climáticas para a produção da água. A crise climática exige que a segurança hídrica seja tratada como prioridade estratégica, com a gestão pública no centro das soluções. Se queremos garantir vida digna e desenvolvimento sustentável, a Cedae deve ser 100% pública, fortalecida e comprometida com os interesses da população. E esse é o nosso compromisso na Alerj e nas ruas, junto do do povo fluminense e dos movimentos sociais.
*Renata Souza é deputada estadual (Psol-RJ), jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, cria da Maré.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.