O maior desastre ambiental da história do Brasil vai completar 10 anos em novembro. Em 2015, o rompimento da barragem da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP, destruiu comunidades inteiras em Mariana, Minas Gerais, matou 19 pessoas e contaminou o Rio Doce. Mesmo assim, no fim de junho, o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) aprovou uma nova licença para a mineradora operar na região.
O projeto, chamado “Longo Prazo”, pretende ampliar a capacidade minerária do Complexo Germano, situado entre Mariana e Ouro Preto, e prevê mais extração de minério, lançamento de rejeitos e construção de novas pilhas de resíduos.
Flora Passos, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão sobre Conflitos em Territórios Atingidos (Conterra), destaca os possíveis impactos dessa autorização.
“Podemos citar como impactos, em especial nas comunidades mais próximas à pilha de estéril e rejeitos, Bento Rodrigues e Camargos, a possibilidade de falha na pilha e de deslizamento, em caso de precipitações excessivas, por exemplo. Isso levaria a um efeito de cadeia, por conta da pilha estar associada a outras estruturas. Seria atingir novamente a bacia do Rio Doce, que já foi atingida pelo rompimento. E, não necessariamente, o colapso é o único impacto, pode haver também a contaminação do ar, da água e do solo, e isso significa problemas à saúde física e mental das comunidades”, aponta.
Entre as comunidades que podem ser impactadas estão Bento Rodrigues (território de origem), Novo Bento Rodrigues (reassentamento coletivo), Camargos, Santa Rita Durão, Antônio Pereira e Morro d’Água Quente.
Bento Rodrigues e Camargos são duas das áreas mais afetadas pelo rompimento de 2015. Dessa forma, além da insegurança às famílias, o empreendimento pode ferir a legislação
internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que prevê o direito e garantia à não-repetição de danos às comunidades e territórios atingidos.
“Essa legislação define que uma reparação integral tem que atender a uma série de aspectos, como a restituição, a compensação, a reabilitação e a garantia da não repetição de violação de direitos, a não repetição de desastres em territórios e comunidades já atingidas. E percebemos que, nos estudos feitos pela mineradora de alocação dessas pilhas, o principal argumento é econômico, desconsiderando as comunidades existentes”, explica Flora Passos.
“No caso de Bento Rodrigues, o empreendimento está próximo não só ao território de origem, que foi atingido em 2015, mas também está próximo à estrada de acesso ao reassentamento coletivo, o Novo Bento Rodrigues, para onde foram as famílias atingidas pelo rompimento. É uma pilha de mais de 200 metros”, continua a coordenadora do Conterra.
Revitimização
Morador de Bento Rodrigues e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão, Mauro Silva relata que o sentimento entre as famílias que vivem na região é de temor. Ele também denuncia que as principais comunidades que devem ser atingidas pela ampliação do projeto da Samarco sequer foram consideradas nos estudos de impactos realizados pela mineradora.
Para o atingido, a decisão do Copam deveria ser reavaliada. “É um projeto que precisa ser reavaliado, pensando na viabilidade técnica de implantação dessas pilhas de estéril em outro local. Não somos contra a mineração, mas precisamos de uma mineração sustentável e que respeite o meio ambiente e as comunidades do entorno.”
Silva ainda lembra que a ampliação do projeto na região pode impactar novamente o rio Gualaxo do Norte, que, em 5 de novembro de 2015, já teve as suas matas ciliares destruídas e foi tomado pela lama de rejeitos.
“As pilhas de Bento Rodrigues e de Camargos estão em uma proximidade muito grande do rio. O Gualaxo do Norte passa a cerca de 400 metros de Bento Rodrigues. Corre-se o risco de ter toda uma tragédia de novo, que pode chegar novamente à região de Abrolhos, na Bahia. É um projeto que visa o lucro, em detrimento da segurança e do bem estar da sociedade”, alerta.
Ele também faz um aceno às instituições para que revejam a posição de autorização do licenciamento. “Porque, num futuro não muito distante, corre-se o risco desses órgãos serem criminalizados e penalizados por terem licenciado, mais uma vez, um empreendimento que pode trazer sérios danos às comunidades.”
A licença foi aprovada com unanimidade pelos conselheiros do Copam, que, atualmente, representam as seguintes entidades: Associação dos Engenheiros de Minas do Estado de Minas Gerais (Assemg), Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sede), Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Secretaria de Estado de Governo (Segov), Centro Industrial e Empresarial de Minas Gerais (Ciemg), Sindicato das Indústrias Extrativas de MInas Gerais (Sindiextra), Associação Ambiental e Cultural Zeladoria do Planeta, Instituto Heleno Maia de Proteção à Biodiversidade (IHMBio), Agência Nacional de Mineração (ANM) e Dom Helder Câmara.
Irregularidades no processo de licenciamento
Além da proximidade das pilhas com as comunidades e possibilidade de revitimização dos atingidos, especialistas apontam uma série de irregularidades no processo de licenciamento. A advogada Thabata Pena cita alguns desses problemas. Ela é membro da equipe jurídica do Instituto Cordilheira, que atua na defesa do meio ambiente.
“A primeira irregularidade é que, apesar de existirem técnicas mais seguras para a gestão dos rejeitos, durante os 11 primeiros anos do projeto, haverá disposição de rejeitos úmidos. Isso significa barragens, como a barragem do Fundão. Isso é ainda mais alarmante diante de um segundo ponto, que é o fato de que esse estudo não leva em conta as alterações do ciclo hidrológico em Minas Gerais, considerando os extremos climáticos. Chuvas extremas, por exemplo, podem causar galgamento, uma pressão muito alta nas pilhas de estéril, e algum deslizamento ou rompimento de barragem, colocando em risco a segurança das pessoas e do meio ambiente”.
Outra questão que, na avaliação da jurista, tira legitimidade do licenciamento é a ausência de consulta às comunidades. “A comunidade de Bento Rodrigues não foi devidamente consultada no estudo de impacto ambiental, o que prejudica a legitimidade do processo e a escuta ativa das pessoas que já sofreram tanto com a mineração. Há ainda uma dificuldade muito grande de conseguir informações da prefeitura e da empresa. É inaceitável”, finaliza.
Em nota à imprensa, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), secretaria a qual o Copam é vinculado, afirma que “a licença concedida estabelece uma série de condicionantes que garantam a mitigação de impactos, especialmente aqueles relacionados às comunidades do entorno, incluindo o novo Bento Rodrigues e Camargos. Entre as exigências, destaca-se a apresentação de estudos, com foco na identificação e implantação de medidas de proteção às comunidades locais, bens naturais e materiais”.
Já a Samarco diz que realizou estudos que “demonstraram a viabilidade do projeto e foram apresentados e debatidos com a sociedade”.