Neste mês de julho, a jornada de alfabetização em Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro, entra no seu terceiro ano. Com o método cubano “Sim, Eu Posso”, o município já formou quase 2 mil pessoas.
Nesse processo de alfabetização reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), as tradições culturais, a identidade e o conhecimento dos próprios educandos são o ponto de partida para a iniciação no mundo das letras.
Antes do início das aulas, há um longo processo de mobilização e busca ativa na cidade, depois, os educadores passam por uma formação sobre o método e temas como história, cultura, identidade e planejamento.
Em entrevista o Brasil de Fato, a coordenadora pedagógica do “Sim, Eu Posso!” em Maricá, Paula França, contou a experiência do projeto na cidade, pontuou os desafios para erradicar o analfabetismo no país e compartilhou histórias marcaram a jornada.
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Maricá tem a meta de alfabetizar 700 pessoas este ano. Para além dos números, cada um dos educandos dá um sentido a sua própria jornada de aprendizagem, conhecimento e dignidade. Uma aula inaugural com a presença de lideranças políticas está prevista para o dia 18 de julho. Já o início das aulas em todos os distritos será no dia 21 deste mês.
Leia a entrevista:
Brasil de Fato – Como avalia os desafios da educação pública para erradicar o analfabetismo?
Paula França – O Brasil tem um grande contingente de pessoas não alfabetizadas, principalmente na região Nordeste, e nunca enfrentou essa questão com centralidade. Atualmente estamos com o pacto pela EJA [Educação de Jovens e Adultos], que está prometendo ampliar as iniciativas.
Ainda assim, a EJA continua sendo tratada por projetos pontuais. Não há um programa efetivo para erradicação do analfabetismo no território brasileiro.
Outro desafio que se coloca é a formação do analfabetismo funcional. As disciplinas escolares têm mudado seu caráter, se fragilizando, e com isso cada vez mais adolescentes estão saindo do Ensino Fundamental e até do Ensino Médio sem saber ler e escrever plenamente. Eles acabam voltando aos bancos escolares pela EJA.
Outro ponto são as pessoas com deficiência que não puderam se alfabetizar enquanto eram crianças ou não tiveram os acessos, e agora acabam chegando na escola pela EJA.
Os desafios são muitos, e a primeira coisa devia ser tirar a EJA da marginalidade, porque sempre foi tratada como uma questão marginal dentro do plano de educação. Então, a gente precisa superar isso e colocar na centralidade se a gente quer mesmo se tornar um território livre do analfabetismo.
A jornada em Maricá começou em 2023, o que a alfabetização tem proporcionado na vida das pessoas?
Essa é uma questão bem importante porque depende um pouco do nosso perfil de educando. As pessoas mais velhas, às vezes, elas só querem saber ler a Bíblia, entender os rótulos dos medicamentos, coisas mais simples. Tem outra faixa etária, dos 40 e 50 anos, que as pessoas precisam saber ler um ônibus, ir ao supermercado com uma lista de compras e saber escolher os produtos que elas querem, tirar carteira de motorista.
Muitas delas, desde a primeira edição da jornada em 2023, têm alcançado os seus objetivos e com isso sua vida tem sido impactada pela conquista do conhecimento que tem tornado ela uma pessoa mais confiante, mais autônoma, que deu um passo no sentido também de poder continuar sua escolaridade.
Alguns educandos nossos conseguiram um cargo melhor no emprego. Vários deles seguiram em outros projetos de alfabetização do município em busca do conhecimento em si, acessar os mundos da leitura e da escrita.
Tem coisas que para nós, que nos alfabetizamos quando éramos crianças, que é até difícil de descrever. Mas em diálogo com eles, a gente sente que são pessoas que ficam mais felizes, com menos vergonha, menos acanhados, menos constrangidos. Com mais capacidade de fazer as tarefas simples do dia a dia, mas também acessar os benefícios sociais, as políticas públicas do município.

Não só para o trabalho, mas para poder ir à praia, um show, um museu. Isso tem sido uma propaganda muito grande para que outras pessoas se insiram no programa.
Que histórias ficaram marcadas para você?
Temos algumas. Por exemplo, de uma turma em que a educanda era a filha da própria educadora que alfabetizou a mãe depois que ela já tinha mais de 60 anos. Isso é bem especial, ter sido alfabetizada pela própria filha e ela tem o sonho de se tornar uma jornalista.
Temos também uma coordenadora de turma que o pai dela fez parte das turmas de alfabetização e conseguiu avançar um cargo no emprego. Entre outras histórias, desde as mais simples, mas que tem muito significado para a gente.
Também temos o caso da Aldeia Indígena Mata Verde Bonita. Para além dos educandos, o “Sim, Eu Posso” faz um processo de formação muito grande com os educadores. Para cada educando alfabetizado é um educador que nasce.
A gente tem uma conquista muito grande nesses dois vieses. O primeiro educador lá da Aldeia Mata Verde Bonita, se apropriou tanto do método, conseguiu alfabetizar seus companheiros de aldeia, que depois foi solicitado para trabalhar na escola.
Os agentes de mobilização têm um papel importante de sensibilizar as pessoas a participarem do projeto.
A gente tem cinco momentos importantes na jornada: formação para mobilização e busca ativa; busca ativa dos educandos; formação do método; desenvolvimento das aulas e a formatura.
A jornada começa com esse diagnóstico da realidade para aferir os dados de quantas pessoas não alfabetizadas tem no município, quais os territórios que elas se concentram. A partir disso a gente faz uma formação de três a quatro dias com temas como análise de conjuntura, históricos das campanhas de alfabetização, trabalho de base e agitação e propaganda.
E oficinas para o pessoal se apropriar dessa linguagem e saber o que fazer e o que não fazer na abordagem das pessoas. Isso é bem importante entender: a pessoa é sujeito de direito, ela não é inferior às outras pessoas porque ela não sabe ler e escrever.
Tem também um método de trabalho de base que os educadores precisam se apropriar para fazer esse cadastro. Ano passado a gente conseguiu alcançar mais de 11 mil pessoas. Dessas, mais de 3.400 eram pessoas em situação de analfabetismo. Trabalhamos com mil educandos e formamos 800.
Esse ano a gente conseguiu conversar com mais de 9 mil pessoas, e dessas quase 2 mil estão em situação de analfabetismo. A gente está no processo agora de fazer esse cadastro para abrir as turmas.
Como se dá esse processo?
Esse primeiro contato é importante e vai de certa forma marcando a trajetória do educando na jornada. Essa preparação faz parte do processo de apropriação dos educadores sobre o que é a jornada e por que é importante trazer essas pessoas para as nossas turmas.
Tem algumas estratégias que nós temos utilizado. Desde ir de casa em casa, em todos os bairros de Maricá, batendo de porta em porta para encontrar as pessoas, conversar com elas. Também na rua, nos pontos de ônibus, comércios, canteiros de obra, nos postinhos de saúde, no CRAS, para dialogar com as pessoas.
Aproveitamos as festas, como aniversário da cidade, festa junina, para montar uma tenda e fazer esse cadastramento. Nos ponto fixo como nas passarelas, fizemos até na praia.

Com a ajuda da estrutura da prefeitura, a gente coloca outdoors, adesivo nos vermelhinhos que circulam por toda cidade, carro de som, além das redes sociais. A gente também tem uma rádio poste, então a gente tem um uma vinheta gravada que fica repetindo também durante o dia e falando sobre o método, deixando o telefone, endereço.
Quais as metas do projeto esse ano?
Uma coisa importante para gente ter em mente é que o público da alfabetização vai diminuindo. Ao passo que a gente vai alfabetizando as pessoas, as demandas do ano seguinte vão reduzindo e isso é ótimo.
Esse ano a gente tem uma meta de 700 pessoas. Vamos continuar organizando a primeira fase, que é o método “Sim, Eu Posso”, e a segunda fase que é a continuidade. A fase 2 é o aprimoramento da leitura e escrita, é baseado em temas como história, cultura, identidade, o tema do trabalho, educação, saúde, agroecologia, habitação, questão racial e gênero.
Nos dois primeiros anos a gente conseguiu alfabetizar quase 2 mil pessoas. Esse ano a gente está com a meta de 700 pessoas e estamos com expectativa.