Em meio à fumaça da chanduca, junto a tambores e maracás, a sala Adão Pretto da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS) ecoou as vozes de lideranças quilombolas e indígenas, na quinta-feira (10). Em um espaço de fala solicitado pelas próprias comunidades, a sessão do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) teve como objetivo ouvir denúncias, apelos urgentes e manifestações culturais de resistência.

A principal demanda foi em relação à Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé, garantida por convenções internacionais, como a convenção 169 da OIT, e sistematicamente descumprida em diversos projetos de impacto socioambiental no estado.
“Estamos aqui para convocá-los. Evocá-los!”, exclamou Ìyálasè Yashodhan Abya Yala, da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz), localizada no município de Triunfo.

O Kilombo Morada da Paz denuncia que a ampliação do trecho entre os quilômetros 405 e 415 da BR-386 ameaça diretamente o território, aproximando uma rodovia de intenso tráfego de veículos pesados a menos de 500 metros da comunidade, sem qualquer processo de consulta. A ausência de consulta ensejou uma Ação Civil Pública de autoria do Kilombo, impetrada em dezembro de 2022, que encontra-se aguardando julgamento junto à 4ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF4).

Segundo a liderança, a supressão de vegetação, o avanço de monoculturas e a pressão empresarial configuram um cenário de constante assédio. “Podemos colocar pra vocês ouvirem, do centro da nossa fogueira, escutamos de manhã, tarde, noite e madrugada, o barulho da motosserra derrubando todas as yandìs ao nosso redor. Uma monocultura avança”, relata.
A denúncia da comunidade envolve episódios de abordagens irregulares por parte de empresa contratada pela Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR), que se disse em contato com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para realização do Estudo de Componente Quilombola, necessário para dar continuidade às obras da BR 386, chegando a invadir o território sem aviso prévio, inclusive em dias de ritual espiritual.

Yashodhan Abya Yala disse que, mais do que a atenção, a comunidade precisa de “apoio radical”, e que desde que esteve anteriormente debatendo na Assembleia, está se movimentando. “Todos os dias mantemos uma guarita no nosso território. E eu pergunto: onde está o Grupo de Trabalho (GT)? Onde está o apoio radical que foi prometido às nossas lutas? Nós queremos mais, muito mais, do que boas intenções. O que precisamos é que vocês façam, ao menos, aquilo que prometeram. Nós confiamos em vocês. Ainda acreditamos que este espaço pode, e deve, incomodar.”
A liderança do Kilombo Morada da Paz também mencionou como uma atrocidade a recente sentença da 3ª Vara de Santa Maria, que revogou a portaria expedida pelo Incra, certificando a terra quilombola de São Miguel dos Pretos, localizada em Restinga Seca (RS). Ela solicitou uma moção de apoio do CEDH para esse caso.

Em resposta, Sebastião Henrique Lima, representante do Incra no Rio Grande do Sul, negou qualquer vínculo direto do órgão com a empresa mencionada. “O Incra não trata diretamente com empresas, sejam contratadas pela CCR ou não. Toda a relação se dá com os órgãos licenciadores, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou, no estado, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Nenhuma empresa atua em nome do Incra. Se estiverem dizendo isso, estão usando nosso nome de forma indevida”, esclareceu.
Lima ainda afirmou que o órgão está aberto a receber as denúncias e que elas devem ser encaminhadas também ao Ministério Público, podendo inclusive configurar crime.

Quilombo Vovô Teobaldo
A situação da Comunidade Quilombola São Roque, no município de Arroio do Meio (RS), também ganhou destaque na sessão. Severamente impactada pelas enchentes que atingiram o estado em maio de 2024, a comunidade — formada por cerca de 20 famílias descendentes de Vovô Teobaldo — denuncia a histórica negligência do poder público local.
“A comunidade não tem acesso nem a um laudo definitivo sobre a habitabilidade do território. Os recursos chegam ao município, mas a comunidade não usufrui. As políticas de moradia, saúde e educação nunca chegaram de fato até lá”, relatou a socióloga Mégui Fernanda Del Ré, que realiza estudos com comunidades remanescentes de quilombos no estado.
O presidente do CEDH, Júlio Alt, reforçou a necessidade de atuação institucional para garantir a permanência das famílias no território. “Talvez possamos pensar qual órgão público irá realizar obras de contenção, se for da vontade da comunidade permanecer ali. Essa atribuição cabe justamente ao órgão cuja vocação institucional é a defesa dos quilombolas. Já fizemos uma recomendação sobre a Morada da Paz. Quanto ao São Roque, emitimos um ofício. Precisamos agir dentro do tempo e das instâncias corretas”, finalizou.
O militante Ubirajara Carvalho Toledo, representante do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (Iacoreq), denunciou ainda a inépcia do Estado em relação à convocação do processo eleitoral do Conselho Estadual de Participação da Comunidade Negra, inativo há mais de um ano.
“É um desrespeito. Esse é o conselho mais antigo do estado e não teve seu processo eleitoral convocado. Queremos audiência com o novo secretário de Justiça para entender o motivo dessa paralisação. O estado tem uma lei desde 2002 que o responsabiliza pelo reconhecimento e titulação dos quilombos, mas até hoje temos comunidades, como o Quilombo Júlio Borges, esperando por isso”, disse.
Toledo também destacou os desafios enfrentados por outras comunidades em diferentes regiões do estado, como o Quilombo Unidos da Vila do Sabuqueiro, em General Câmara, e o Unidos do Lajeado, em Lajeado — ambos afetados pelas enchentes. “Temos tecnologia e temos universidades. É preciso convocar esses saberes para garantir infraestrutura e permanência com dignidade nos territórios. Do contrário, os apagamentos continuarão.”
Povo Warao Oriwarao Ajanoko no Rio Grande do Sul

A cacica Florência Quevedo, do povo Warao, relatou a dura realidade enfrentada por sua família e por outros indígenas venezuelanos que buscam refúgio no estado. “Sou indígena da Venezuela. Estou aqui com toda a minha família e precisamos de muita ajuda. Por isso, estou na Assembleia. Vim pela primeira vez porque estamos precisando muito”, afirmou Quevedo sobre a sua participação na sessão.
Ela explica que a situação na Venezuela se tornou insustentável e que a comunidade não vê possibilidade de retorno. “Vamos ficar aqui. Já temos crianças morando no Rio Grande do Sul. Em minha comunidade estamos em 26 pessoas, incluindo as crianças. Precisamos de uma terra para nós, porque estamos em uma casa alugada, e condições para fazer aqui o nosso artesanato tradicional.”

O povo Warao, um grupo indígena originário do delta do Rio Orinoco, na Venezuela, tem migrado em número crescente para o Brasil. Conhecidos como “povos da água”, os Warao tradicionalmente vivem em harmonia com os rios e manguezais venezuelanos. No entanto, a grave crise econômica, social e ambiental enfrentada na Venezuela forçou muitas famílias a deixarem suas terras ancestrais em busca de melhores condições de vida. No Brasil, os Warao enfrentam desafios significativos, como a adaptação cultural, barreiras linguísticas e a dificuldade de encontrar um território para habitar.
De acordo com as lideranças, o chamado feito pela CoMPaz é “inspirado pelo fundamento espiritual partilhado por Mãe Preta, Ìyágbá ancestral do território, de que não há luta sem unidade”. Em manifestação enviada à imprensa, apontam que “se todo território que protege a dignidade e potência de vida está sujeito a enfrentar as forças de destruição representadas pelos megaempreendimentos, pelo racismo estrutural eambiental, pelo grande capital e o patriarcado, é em unidade e solidariedade real e radical que as forças de proteção de cada território se potencializam”.

Os povos convocaram a responsabilidade do Conselho Estadual de Direitos Humanos de assumir o compromisso por um “pacto de vida”. “Para que o sonho possa fazer frente às investidas da violência colonial, é na aliança que os povos afirmam a continuidade da esperança e do bem viver alcançados por seus projetos de vida comunitário-ancestrais”, concluem.
