Era sete de setembro e fazia um calor daqueles que seca até a alma em Brasília. Meio-dia, 35 graus de temperatura, 30 graus de umidade. Um sol para cada candango e cada paulista, que é o meu caso. Tinha participado do Grito dos Excluídos em frente ao Shopping Nacional e vinha cruzando o Eixo Monumental pelo Eixão, sentido Asa Norte, seguindo para a Universidade de Brasília, onde acontecia o penúltimo dia do Fórum Mundial da Bicicleta e Bicicultura.
O feriadão patriótico levara muita gente para as festividades do desfile cívico-militar lá embaixo na Esplanada. As avenidas da capital estavam cheias de carros com bandeirinhas verde e amarela. Lá de cima do viaduto onde eu estava dava para ver a multidão a pé indo para a rodoviária e metrô, atestando o fim da festividade.
Eu vinha da dispersão do Grito, que havia começado na Praça Zumbi dos Palmares, pedalando pela direita, quando vi o sinal vermelho lá na esquina. Um pouco antes de parar, vi o homem negro, esquálido, descalço, de calças escuras e camisa branca, sentado no asfalto escaldante com a mão esquerda no colo, e a direita em forma de cuia na altura do rosto que brilhava sem estar suado. Ele tentava atrair a atenção de quem estava dentro dos SUVs no sinal. Os carrões tinham vidros escuros que escondem as pessoas lá dentro.
Parei ao lado dele e na mesma hora entreguei uma das garrafas de água que carregava. Ele não leu, cheirou, perguntou ou fez qualquer menção de recusar. Girou a tampinha azul e tomou os 300 mililitros em uma só talagada. Deixei a outra também e ele agradeceu, olhando para mim com a mão direita protegendo o rosto do sol. Sai dali indignado. Em pleno século 21, gente passando sede num país como o Brasil. Quando ele teria tomado o último gole de água? Quando tomaria o próximo, se eu não o ajudasse? Pensamentos que me vieram quando o deixei para trás, à própria sorte.
Continuei minha jornada. O calor era tanto que os pneus da bicicleta resmungavam em rodar pelo asfalto impecável da avenida brasiliense. Parece pista de autódromo de tão perfeito que é. Aqui em São Paulo ele é encaroçado, não é uniforme como no DF, onde por sinal mora um dos tricampeões de F1 [Nelson Piquet], o motorista de Bolsonaro. Deve ter essa influência, por certo. Foi uma das primeiras coisas que notei quando pedalei por lá. Os pneus dos carros quando fazem os retornos nas curvas ficam rindo um risinho agudo que parece o rangido de uma porta sem óleo.
Mas eu não tinha motivo para rir. Em dado momento, senti o coração acelerar e uma forte emoção me chacoalhar dos pés à cabeça. Deu uma vontade de chorar, os olhos lacrimejaram e eu lamentei alguma coisa sobre as injustiças da vida. Torci os beiços, franzi o cenho e deixei a agonia sair num grande suspiro ao mesmo tempo em que apertava as manoplas com mais força. Vontade de sumir do mundo.
Ficar longe de casa me causa essas angústias de refletir a existência, de filosofar a vida, de ser ou não ser, e os arroubos da resignação. Geralmente, esses sentimentos são disparados ao me deparar com cenas de sofrimento alheio que eu quase sempre presencio a pedalar pelos cantos das cidades que tenho o privilégio de conhecer por causa da bicicleta.
Encontros como esse do Dia da Independência têm o poder de suscitar esses sentimentos. Aquele ali no sinal poderia ser eu ou um amigo que de alguma maneira teve o infortúnio de cair numa roleta que o jogou para a margem da sociedade. Quantos que você conhece não se tornaram invisíveis no asfalto infernal da grande cidade?
No banco da bicicleta continuei carregando a comoção, que nesse meu caso nunca é por uma coisa só. Inclua aí as mães e crianças da Palestina, as mulheres assassinadas, os povos originários exterminados, a fome nas palafitas e nas favelas e os sem-terra massacrados. Eu também chorei por mim mesmo. E pedalei até meu destino, ainda que não saiba qual será meu fim.