Por Luciano Mendes
Outro dia, no recém passado São João, estávamos, Raylane e eu, voltando de uma apresentação de Beto Hortiz, Alceu Valença e outras pessoas no Sítio da Trindade, no Recife, em Pernambuco. Um belo espetáculo, e as companhias de Ana Félix, Alexandre Viana, Cristiana Pailin e Fernando Cunha não poderiam ser melhores.
Numa determinada altura da viagem, o motorista de aplicativo que nos conduziu perguntou se havia muitas pessoas na festa. Ao que Raylane, uma sergipana radicada no Recife há alguns anos, respondeu: “sim, muita! Tinha gente saindo pela culatra”. Eu, no meu canto, imediatamente me lembrei de uma colega, mineira, que sempre dizia, quando a pessoa ficava de lero-lero, que ela estava “enrolando linguiça”.
Na primeira oportunidade que tive, ainda no carro, interpelei-a: “então, havia gente saindo pela culatra?” E ela, olhando para mim meio, assim, desconfiada, afirmou perguntando:“isto mesmo! Havia gente saindo pela culatra, não havia não?”
Ainda desconfiado de que havia algo de errado na afirmação, perguntei. “Não seria gente saindo pelo ladrão?”. Aí foi a vez dela se espantar: “pelo ladrão? Como? O que significa isto?”. Na controvérsia, ela buscou o apoio do motorista.
“Você me entende, né moço? Quando digo, gente saindo pela culatra, não entende? – ao que ele respondeu pronta e afirmativamente. Fiquei eu com a cara de tacho e ainda tendo que explicar de onde vem essa coisa de “gente saindo pelo ladrão”.
A gente, quando nasce em um país, como de resto acontece com quase todo mundo nos últimos séculos, já nasce estrangeiro para todos os outros. É um processo que até parece natural, só que não. Ser estrangeiro, habitar a terra de outras pessoas, requer um aprendizado longo e lento, ainda mais quando se quer integrar à nova comunidade imaginária em que se vive. E, mais ainda, sabemos que se pode ser estrangeiro na própria terra, o que não deixa, também, de ser um aprendizado exigente e uma experiência, às vezes, dolorosa.
“Conhecer o país; Comer o país”
Pois cá estou eu, com meus sessenta e mais, aprendendo, de novo, a ser estrangeiro em um novo “país”, como o fui em Belo Horizonte há 50 anos. E quando este novo país é Pernambuco e, mais especificamente, o Recife, a coisa se complica um pouco mais!
Não é à toa que Manoel Bandeira, em uma de suas Crônicas da Província do Brasil, afirma que “o encanto do Recife não aparece à primeira vista. O Recife não é uma cidade oferecida e só se entrega depois de longa intimidade”. Pois eu, neste recém passado São João, busquei mais intimidade com a cidade, como o tenho feito nos últimos anos, e os aprendizados têm sido muitos.
Há alguns anos eu escrevi um conto, que está no livro A primeira página e outros contos mexicanos, que tem por título “Conhecer o país; Comer o país”. A ideia de comer o país para conhecê-lo, que me foi transmitida por Ítalo Calvino, reaparece no livro para dar conta das experiências gastronômicas que tive quando morei no México, em 2018. Mas, como sabemos, para todo estrangeiro, não basta comer o país para conhecê-lo, ainda que esta seja uma condição importante, pois aprender a comer o/no Recife é um capítulo à parte.
De doloroso há, claro, o fato de sair de uma cidade com qual eu tinha muita intimidade, que eu conhecia razoavelmente, ainda que nunca totalmente. Aliás, ninguém conhece uma cidade totalmente, nem mesmo os taxistas e motoristas uberizados que, guiados pelos aplicativos de geolocalização, vão e voltam, muitas vezes, sem saber onde estiveram. Deixar o conforto das referências já sabidas, dos marcos e das marcas urbanas já conhecidas, das ruas mil vezes percorridas com calma ou sofreguidão, não é fácil. E exige esforço para o reencontro consigo mesmo e para o encontro com o “outro”, este desconhecido de sempre.
Mas, fora as dores e as delícias, que são muitas, há muito aprendizado em ser estrangeiro no Recife. Da comida ao idioma próprio da cidade – quem mais diz que a pessoa é “pirangueira” para dizer que ela é “pão dura”? Ou que cidade tem uma conjugação verbal toda especial como aqui? –, passando pelas memórias sabidas e/ou compartilhadas mesmo sem o saber, como em todo lugar, tenho tentado entrar na intimidade do Recife. Sei que demanda tempo, e agência, e tenho buscado me dedicar a isto.
Também a cidade pulsa de modo muito especial ao longo do ano. As duas estações, verão e inverno, se diferenciam pelas chuvas torrenciais do meio do ano, pois frio por cá não há. Mas o que estabelece o ritmo da cidade, e distingue as estações, são mesmas as festas: aqui as coisas ocorrem entre o carnaval e o São João e entre o São João e o carnaval. E, é claro, há o mar, com tudo que nele há e que ele provoca, inclusive o muito trabalhar, como já pude constatar. A onipresença destes três elementos – o mar, o carnaval e o São João – e as contínuas referências a Adriano Suassuna, Miguel Arraes e Chico Science ajudam a configurar, para o estrangeiro, uma marcante, ainda que incompleta, cena político-cultural da cidade, ao mesmo tempo em que o ajuda a perceber a indisfarçável gramática das diferenças e das desigualdades que habitam o Recife.
Mas o ser estrangeiro por aqui tem me feito avaliar, também, o quanto fui acolhedor ou inóspito com as pessoas que chegaram estrangeiras em minha terra, o mais Belo Horizonte do mundo (e de Minas Gerais, ora pois!). Neste caso, a balança pesa vergonhosamente contra mim: nem sempre consegui sair do meu lugar de conforto na cidade e com a cidade para, nela, acolher quem chegava. Esta é uma das coisas que quero mudar em mim: ser mais hospitaleiro! Quem viver, e vier, verá, prometo!
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal