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Brasil se ‘terapeutizou’ antes de criar políticas de saúde mental, alerta psicóloga

Popularização da terapia convive com expectativa de 'consertar' o indivíduo, afirma psicanalista Késia Rodrigues

A explosão de perfis de psicólogos nas redes sociais, memes como “procuro alguém com terapia em dia” e filas nos consultórios não significam que o país esteja mais saudável. Para a psicóloga e psicanalista Késia Rodrigues, criadora do projeto Muito além da terapia, no Instagram, o Brasil “se ‘terapeutizou’ antes mesmo de criar políticas públicas de cuidado e saúde mental”.

“A terapia faz parte do cuidado dentro da saúde mental, mas não é o único e não é também o garantidor dessa saúde mental”, alerta, em conversa no BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato. Ela lembra que o processo de adoecimento é coletivo e atravessado por racismo, desigualdade e precarização da vida, fatores que a clínica individual não consegue resolver sozinha.

Segundo o Censo Brasileiro de Psicologia (2022), mais da metade dos profissionais se formou depois de 2010, em um mercado que cresce com cursos nem sempre qualificados. Mesmo assim, apenas 5 % dos brasileiros fazem psicoterapia, de acordo com pesquisa do Instituto Cactos/Atlas Intel (2023). “Falamos de Brasis: enquanto alguns veem a terapia como status, pessoas não têm acesso à água e à comida, […] nem encontram psicólogo em UBS [Unidade Básica de Saúde], escola ou hospital”, observa Rodrigues.

A ideia de “terapia em dia” é outro sintoma do consumo do cuidado. “Não tem como estar em dia com o processo que é viver, basicamente, porque viver é uma descontinuidade”, diz a psicanalista, comparando o termo a modismos como “treino pago”. Para ela, a lógica de produtividade empurra pacientes a buscar um “autoaperfeiçoamento” impossível. “As pessoas chegam [na terapia] para que elas nunca conheçam o sofrimento”, relata.

Nas redes, segundo ela, a terapia também ganhou contornos morais. “Qualquer ‘desvio’, elemento que foge da expectativa social, tem que ser corrigido. […] A terapeuta, psicóloga, se torna responsável por como aquele sujeito vai agir”, critica. Esse discurso individualizante, acrescenta, combina com o neoliberalismo: desloca do Estado para o indivíduo a obrigação de superar violências estruturais.

Rodrigues defende ampliar políticas de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS), integrar psicólogos a serviços básicos e combater desigualdades que adoecem. “A saúde também tem a ver com moradia, alimentação, igualdade racial, igualdade de gênero, tem a ver também com o modelo político‑democrático”, resume.

Para ouvir e assistir

BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.

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