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A coluna tem o objetivo de realizar uma análise precisa por uma mídia ética, humanizada e sem violações dos direitos humanos. Autora: Mabel Dias é jornalista, associada ao Intervozes – Coletivo ...ver mais

Por uma política cultural que respeite e valorize a vida das mulheres

Por Mabel Dias*

A cultura pode ser um meio para coibir a violência de gênero, e não estimulá-la

Músicas com letras que objetificam as mulheres, colocando-as em uma posição de subalternidade existem aos montes, e em diversos estilos musiciais. Infelizmente. Elas fazem parte do cotidiano da população brasileira, naturalizando a estrutura patriarcal, presente em nossa sociedade. Quem não se lembra da música Tapinha, que fez sucesso nos anos 2000, da banda Furacão 2000 e trazia em seu refrão a frase “Um tapinha não dói, só um tapinha”.

Por causa dessa naturalização de um gesto violento sobre a mulher, a ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e o Ministério Público Federal (MPF) entraram com uma ação contra a produtora da banda e a União, por banalização da violência  contra as mulheres. Tapas, socos, empurrões são comportamentos constantes por parte dos agressores em situações de violência doméstica, familiar e em espaços públicos, e não podem ser naturalizadas de forma alguma. Violência contra as mulheres não é brincadeira, e sim, crime.

Outra música, cantada por Walkyria Santos, diz o seguinte: “Amor, me leva, faz de mim o quiser, me usa, pois o meu maior prazer é ser sua mulher”. Alguns podem considerar um fetiche, mas não é possível negar que reforça uma posição de submissão da mulher em relação ao homem, dizendo que ele pode fazer o que quiser com ela, e sabemos que em relações sexuais violências também podem acontecer.

Outro exemplo que podemos citar é a música Lapada na Rachada, cantada por diversas bandas nordestinas, e que diz em seu refrão: “Você pede, eu te dou, tapa da na rachada […] que eu sou sua cachorrinha”. Mais uma vez, vemos o reforço da submissão da mulher em relação ao homem. Esses são apenas alguns exemplos de músicas que objetificam as mulheres e podem contribuir com a mentalidade machista e misógina, estruturalmente construída na sociedade brasileira em relação ao gênero feminino. Tais cantores e bandas sempre são contratados para se apresentar em festas populares tradicionais, como o São João, e as de santas padroeiras das cidades, como a da Festa das Neves, que acontece nos meses de julho e agosto, na cidade de João Pessoa.

O Brasil é um dos países com os mais altos índices de violência contra as mulheres e meninas, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados referentes ao ano de 2023 mostram um crescimento de todas as modalidades de violência contra as mulheres brasileiras (física, psicológica, sexual, moral, dentre outras), como também de crimes virtuais, como de stalking (perseguição), com um aumento de 34,5%. Em relação às meninas e adolescentes, o estupro de vulnerável registrou um crescimento de 6,5% em comparação ao ano anterior, e o principal causador desse tipo de violência é geralmente, algum familiar (pai, marido, namorado, ex-marido).

Na internet e nas plataformas digitais, grupos misóginos, que propagam ódio contra as mulheres, têm se disseminado de forma preocupante. E os adolescentes têm sido recrutados por esses grupos, em fóruns ou perfis de redes sociais, para cumprir desafios, com o objetivo de “provar a sua masculinidade”, e as meninas são os principais alvos dessa violência de gênero, organizada por grupos masculinistas.

Como evidenciam os dados, o Brasil é um país machista, onde a violência de gênero cresce a cada dia, e o feminicídio é uma epidemia social. Nesse sentido, essas músicas influenciam a prática da violência contra as mulheres? A jornalista, professora do curso de Jornalismo, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e associada ao coletivo Intervozes, Ana Veloso, acredita que sim. “Essas músicas estimulam a manutenção do status quo. Ou seja: a reprodução da dominação masculina e a coisificação das mulheres”, afirma.

Entendemos que a cultura pode ser um meio para coibir a violência de gênero, e não estimulá-la, um caminho para educar e conscientizar a população sobre o problema da violência contra as mulheres no Brasil, e não um canal para que ela seja naturalizada, sendo respaldada, inclusive, por quem deveria assumir o compromisso em combatê-la, como o Estado.

No entanto, as bandas e os cantores que ecoam essas letras no palco são sempre contratados pelo Estado, sendo pagos com o dinheiro público – cachês que na maioria das vezes, são vultosos – e que poderiam ser investidos em artistas comprometidos com o enfrentamento à violência contra as mulheres, por exemplo, ou em campanhas educativas sobre a temática.

A 5º Conferência Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres, realizada em João Pessoa, nos dias 11 e 12 de julho, aprovou em sua plenária final uma moção de repúdio à Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope) pela contratação de uma banda que traz em uma de suas letras a seguinte frase: “Quem mandou tu dar a xereca pros bandido”. As participantes da Conferência afirmaram no documento que a Funjope não deve contratar bandas e cantores, de qualquer estilo musical, que tragam em suas letras o reforço à cultura do estupro, a misoginia, a violência doméstica e a transfobia. “Esse tipo de contratação viola leis como a Lei Maria da Penha (11.340/2006), a Lei 14.192/2021, e princípios constitucionais de igualdade e dignidade da pessoa humana”.

A banda, que motivou a moção das mulheres na Conferência teve o contrato cancelado pela Funjope. No entanto, o presidente do órgão não levou em consideração o conteúdo das letras da banda como motivo para o cancelamento, e sim, o assassinato de um jovem, que aconteceu durante a apresentação da banda, na cidade de Cubati (PB). Durante esse mesmo show, uma menina de apenas 11 anos foi convidada a subir ao palco e dançar as músicas da banda, em uma nítida objetificação de seu corpo, como mostraram as imagens e fotos que vimos.

Em outra letra dessa mesma banda, que se refere a uma relação sexual entre um homem e uma mulher, um dos trechos diz: “Só não perde a linha. É pau a noite toda já para evitar gracinha.” Infelizmente, na Conferência Municipal de Mulheres de João Pessoa, as temáticas da Cultura e da Comunicação, campos em que a violação dos direitos das mulheres também acontece, e precisa ser problematizada, não foram incluídas nos eixos temáticos. Sobre o cancelamento da apresentação dessa banda na Festa das Neves, em João Pessoa, a  jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na UFPE, Luane Fernandes, chama a atenção para a não criminalização das bandas da periferia e do estilo brega funk, que canta a realidade dos territórios periféricos.

Ao final da moção, as mulheres reivindicam à Funjope o cancelamento de contratações que promovam conteúdos violentos ou discriminatórios contra as mulheres, crianças e adolescentes, mulheres negras, lésbicas, mulheres bissexuais e transexuais; adote critérios éticos na escolha de atrações culturais, e, por fim, inclua mulheres e coletivos feministas nas decisões sobre a política cultural da cidade, e reforçam, que a política cultural deve respeitar e valorizar a vida das mulheres. E das meninas também!

*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, doutoranda em Comunicação pela UFPE, associada ao coletivo Intervozes, observadora credenciada no Observatório Paraibano de Jornalismo e conselheira da Coar – Agência de Notícias Independente.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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