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100 anos de Fanon: ‘Mais necessário do que na época dele’, diz autor de novo livro sobre pensador anticolonial

Neste 20 de julho celebra-se centenário de Frantz Fanon, crucial para compreender ligação entre colonialismo e racismo

Neste domingo, 20 de julho, celebra-se o centenário do escritor, filósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1925-1961), expoente do pensamento crítico anticolonial. Obras clássicas como Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra são consideradas fundamentais para compreender como o colonialismo e o racismo se articulam com o capitalismo e como esse processo afeta a subjetividade humana, inclusive nos dias de hoje. 

Em entrevista ao programa BemViver,  o escritor e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Deivison Faustino, autor do livro Desde Fanon, lançado este mês pela editora Boitempo, falou sobre como o pensamento fanoniano continua atual, principalmente para entender os processos geopolíticos vigentes, como o genocídio palestino em Gaza e o monopólio das big techs em todo o mundo.

Deivison também defende que Fanon é um teórico da tecnologia. “Temos estudado esse momento da sociedade em que as tecnologias digitais têm alterado as nossas formas de fazer política, de fazer amor, de comer, de estar no mundo. Mas essa alteração tem sido controlada por grandes monopólios em um processo que o sociólogo sul-africano Michael Kwet vai chamar de colonialismo digital”.

Segundo Deivison, as ideias de Fanon dão fundamentos para uma crítica hacker ao colonialismo digital. “A perspectiva hacker fanoniana é não recusar a tecnologia, mas se apropriar dela para criar, inclusive, alternativas de comunicação”, afirma o escritor. 

Confira entrevista na íntegra.

Qual é a crítica do Fanon ao colonialismo e como ele relaciona essa crítica ao capitalismo e ao racismo?

É uma pergunta muito interessante, porque é o ponto de partida para um diálogo sobre a atualidade do Fanon. Ele escreveu há muito tempo, num curto período de vida, entre os 26 e os 36 anos. Então são 10 anos de produção e ele morre precocemente.

Mas era uma outra época, era década de 1950, um momento do pós-guerra, da Guerra Fria, mas também de um conjunto de movimentações políticas que estavam acontecendo no Sul Global, especialmente no continente africano. 

E o Fanon aposta nas independências como um caminho para a emancipação dos países africanos, mas também como um caminho para a emancipação humana.

O desafio é pensar a atualidade do Fanon. Nesse momento que a gente está parece que a realidade se apresenta como fechada a qualquer transformação. Temos uma ascensão da nova direita ao redor do mundo, a retomada do nazismo, o genocídio na Palestina, provocado pelo estado racista e colonialista de Israel, a ameaça de bombas atômicas de uma guerra generalizada ou de catástrofes climáticas. 

Então a nossa época é diferente da de Fanon, mas ainda assim Fanon é útil hoje. Eu cito os racionais: “Porque os nossos motivos para lutar ainda são os mesmos”, de certa forma. E Fanon como médico, olhando para a sociedade, vai diagnosticar algumas feridas que ainda estão abertas e talvez muito mais infeccionadas, muito mais doloridas do que eram na época dele. Então ele ainda é atual.

E um dos elementos mais importantes da reflexão dele é a forma que ele articula ou identifica na realidade uma articulação entre capitalismo, colonialismo e racismo. Para ele, o capitalismo se organiza a partir da construção de um indivíduo abstrato. 

Um dos elementos que pauta o capitalismo é o trabalho abstrato, mas para o trabalho abstrato ser possível, você precisa de um indivíduo abstrato. Você precisa de uma noção abstrata de igualdade, de liberdade. Mas essas noções nunca podem ser estendidas às colônias porque o capitalismo chega na colônia a partir da negação dessa abstração, que é a liberdade, a igualdade, a individualidade.

Imagine o escravo moderno. Ele não pode ser reconhecido como livre, nem como humano. E aí o racismo cumpre um papel fundamental nesse período inicial de desenvolvimento do capitalismo para o Fanon, porque ele permite construir uma linha de cor, permite construir um muro entre quem está dentro da cidadania e quem está fora.

Quem está fora do contrato social jamais será visto como contratante. Só o colonizado entra nas relações capitalistas como uma mercadoria que vai ser trocada. E para sustentar essa lógica que é extremamente necessária para o desenvolvimento capitalista, foi necessário o racismo. O racismo aparece na formulação do Fanon não como um problema superficial ao capitalismo e nem como algo que tende a desaparecer à medida que o capitalismo se desenvolve.

Pelo contrário, o racismo aparece como um elemento indispensável para o desenvolvimento capitalista e ao mesmo tempo a tendência é que o racismo se intensifique à medida que o capitalismo se intensifica, porque o racismo vai criando nichos de desumanidade, onde a ética, a estética e a política não se aplicam.

Podemos pensar a postura da polícia paulista em Paraisópolis, por exemplo, assassinando jovens. Podemos pensar o ministro de Defesa do estado de Israel, quando ele anuncia que Israel iria fechar todos os suprimentos da Faixa de Gaza de água, comida, eletricidade, comunicação e ia bombardear porque eles não são humanos.

Essa ideia de não humanos foi aplicada em outro momento ao povo judeu no contexto do nazismo, mas é essa ideia que organiza a modernidade durante os 400 anos de colonização. Para Fanon, o próprio capitalismo é impensável sem o sistema colonial. E o sistema colonial, por sua vez, vai se rearticulando à medida que o capitalismo se desenvolve.

Então é óbvio que não dá para falar hoje no colonialismo nos termos das caravelas, das capitanias hereditárias e muito menos nos termos daquilo que o [revolucionário russo Vladimir] Lenin está olhando no final do século 19, por exemplo. Mas é óbvio, pelo menos para Fanon, que mesmo as lutas de libertação que vão acontecer no século XX podem muito facilmente resultar em expressões neocoloniais de dominação e de exploração se a lógica colonial permanecer.

Então, Fanon nos alerta para essa dimensão colonial que nos acompanha e que talvez torne possível o fascismo porque o que o fascismo vai fazer na Europa é aquilo que a Europa sempre fez fora dela. Então, pensar o fascismo, inclusive esse momento atual, sem considerar o que veio antes do fascismo e o que deu condição para ele existir e que talvez ainda exista, o colonialismo, pode nos levar a uma análise muito eurocêntrica e precária da própria dinâmica de desenvolvimento do capitalismo nesse momento em que a democracia e a cidadania deixam de ser necessário para reprodução capitalista.

 É um momento também de crises dos sistemas de representação política, em que você tem [o presidente dos EUA, Donald] Trump, por exemplo, que não precisa mais fingir ser um estadista. Ele simplesmente diz: “Vou taxar porque não me beneficia”.

Ou a proposta que o Trump faz para o [presidente da Ucrânia Volodymyr] Zelensky quando ele diz: “Eu ajudo vocês com a Rússia se vocês me darem acesso às suas terras”. Isso sempre aconteceu. Os Estados Unidos chega a ser o que é fazendo isso no México, na África, na Libéria, na Líbia, as intenções coloniais apareciam tais quais são.

Elas tendem a ser disfarçadas, pelo menos nas metrópoles. E hoje parece que esse disfarce não se sustenta mais. Então, acho que o Fanon ajuda a gente entender esse momento atual e talvez ele seja mais necessário do que ele era na época dele.

Chegando neste termo da crítica hacker fanoniana, como temos que agir com a questão da inteligência artificial? Temos que hackear, por exemplo, as redes sociais?

Nesse livro, Desde Fanon, que saiu agora pela Boitempo, tem um artigo em que eu e o Walter Lippold defendemos que Fanon também é um teórico da tecnologia.

Temos estudado esse momento da sociedade em que as tecnologias digitais têm alterado as nossas formas de fazer política, de fazer amor, de comer, de estar no mundo. Mas essa alteração tem sido controlada por grandes monopólios em um processo que o sociólogo sul-africano Michael Kwet vai chamar de colonialismo digital.

Porque ele está olhando para o quanto o processo de monopólio das big techs é tão intenso que deixa de ser só um elemento econômico e passa a ser também um elemento geopolítico. As big techs são para o Michael Kwet um dos braços do imperialismo estadunidense contemporâneo. 

Elas têm um efeito geopolítico importante e é a partir delas que os Estados Unidos conseguem inclusive ter acesso a informações privilegiadas sobre o que acontece no resto do mundo e utilizar essas informações para os seus interesses geopolíticos. 

Quem controla as redes de transmissões de fibra ótica ou sinais de satélite, quem controla os aplicativos de mensagem, as redes sociais, acaba também podendo influenciar o público sobre as informações que transitam por ali.

Então não é à toa que os Estados Unidos utilizou o Facebook na eleição do Trump para favorecer um um candidato em detrimento de outro.

Não é à toa que, durante o genocídio palestino, Israel usou aplicativos de modelos de inteligência artificial que utilizavam dados do Google e da Meta para poder identificar a localização de militantes e bombardear aqueles territórios. Então a tecnologia é um elemento geopolítico fundamental nesse momento do capitalismo, em que a guerra é uma forma de gerir a crise de acumulação do capital. 

A guerra sempre foi uma forma de ampliar a acumulação, mas neste momento de crise estrutural, a guerra tende a se generalizar.

Fanon nos ajuda a pensar se há uma relação entre capitalismo, colonialismo e racismo, Fanon também vai nos ajudando a entender a função econômica do racismo nesse momento do capitalismo em que o próprio estado de bem-estar social está sendo corroído pela própria necessidade do capitalismo.

Lendo Fanon, um dos autores que foi fundamental para chamar a atenção para isso, um professor do Paraná chamado Ivo Queirós, escreveu uma tese em 2012, apresentando Fanon como um teórico da tecnologia. E aí seguimos essa linha do Ivo para pensar o que Fanon está dizendo. 

Ele vai dizer que a tecnologia, em uma relação de poder, de dominação, de exploração e de expropriação que representa o colonialismo, também ocupa um papel colonial. E aí ele dá o exemplo tanto das tecnologias médicas, quanto das tecnologias de comunicação onde o rádio é o que havia de mais sofisticado em torno de indústria de massas.

Então Fanon vai perceber que a tecnologia ela não é neutra e como ela chega nas colônias como uma arma do colonizador. Primeiro porque as técnicas médicas vão desautorizar os saberes locais.

Segundo porque a rádio europeia que circulava na Argélia, vai servir de propaganda para manutenção do colonialismo francês, de contra propaganda ou de propaganda contra a revolução e de manipulação, mas também sobretudo de introjeção de valores europeus naquela sociedade. 

Então, quando começa a revolução argelina, a primeira reação dos revolucionários ao perceber o papel colonial da tecnologia foi recusar a tecnologia, foi demonizar a tecnologia. E Fanon vai dizer o quanto isso é infértil, inocente e inútil. Porque não dá para voltar no tempo, ainda que a gente queira.

A tecnologia está aí e ela altera todo o jogo da vida e das relações de poder. Então, a pergunta é outra, a pergunta é o que fazer com a tecnologia e como colocá-la a serviço das necessidades humanas?

Ao invés de demonizar a rádio, eles vão começar a saltar as estações e roubar os transmissores para poder fazer os programas de rádio argelino com os valores da revolução e com valores contra a hegemonia cultural francesa.

Essa virada para Fanon é uma virada tecnológica e é o que a gente chama de hacker fanoniano. 

Então a gente também entende que nesse momento é fundamental recuperar o espírito hacker ativista, recuperar o debate sobre os software livres, o debate sobre os laboratórios de internet. 

Um exemplo disso é o núcleo de tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que vai lançar um livro em breve, falando dessa experiência, onde eles reúnem programadores, cientistas de dados para produzir aplicativos e tecnologias para colocar a serviço do movimento sem teto. 

A rede Mocambos, a Casa de Cultura Tainã, são espaços que vem tentando colocar a tecnologia a serviço dos quilombos, então a perspectiva hacker fanoniana é não recusar a tecnologia, mas se apropriar dela para criar, inclusive, alternativas de comunicação às redes sociais. 

 A perspectiva hacker fanoniana busca tentar entender essa tecnologia e como que ela tem se organizado, entender o papel dela nas guerras, entender o papel dela na política, no campo da comunicação, no campo da subjetividade para poder hackear no sentido de criar soluções coletivas que vão na contramão das necessidades do capital, do lucro e que coloquem a serviço das lutas, das pessoas.

De fato, passa por pensar em alternativas. E aí a gente falha muito e não discutir alternativas às grandes plataformas. A gente ainda fica muito refém.

Então se a gente não cria estratégias, até o que a gente tem de mais rebelde na nossa luta vira só mais uma forma de atrair pessoas para uma grande corporação estadunidense imperialista que são as big techs. Em algum momento a gente vai precisar discutir qual o projeto da esquerda para tecnologia?

Qual é o projeto das esquerdas, dos movimentos sociais para o desenvolvimento tecnológico no momento em que ele tem alterado decisivamente a nossa forma de fazer política, nossa forma de amar, a nossa forma de paquerar, a nossa forma de interagir e de acessar conhecimento, de conseguir emprego, de se projetar politicamente?

Então a perspectiva hacker fanoniana chama atenção para isso, mas ela também tenta se colocar na direção, como parte de uma luta que tem mais de 40 anos do movimento hacker ativista, do movimento pela proteção de dados, dos movimentos contra o racismo algorítmico.

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