Com elenco 100% negro e periférico, o curta Aconteceu à Luz da Lua exibe uma Porto Alegre diferente daquela que costuma ser retratada nos cinemas. Gravado no Morro da Cruz, o filme foi selecionado para a mostra competitiva nacional de curtas-metragens do Festival de Cinema de Gramado, um dos mais tradicionais do país.
Escrito, dirigido e protagonizado por uma equipe de estreantes, o curta acompanha a trajetória de dois jovens da periferia que sonham com um futuro melhor. Wellington, de 18 anos, busca concluir o ensino médio e ingressar na universidade. Já Willian, de 23, é apaixonado por audiovisual e pretende criar um canal no YouTube para viver da arte, evitando o caminho acadêmico. A história, permeada por dilemas sociais e pessoais, reflete o cotidiano e as contradições da juventude negra nas periferias urbanas.

O personagem Willian é interpretado pelo próprio diretor, Crystom Afronário, que usou sua experiência de vida como base para o roteiro. “Dividi a minha história em dois personagens. Me vi nesse papel entre 2019 e 2021. Foi minha virada de chave, quando me convenci de que precisava ocupar outros espaços, como os que ocupo hoje”, explica.

Filho de mãe solo, Crystom foi o primeiro de sua família a entrar na universidade – e também o primeiro bolsista negro do curso de Cinema e Audiovisual da Unisinos. Ainda antes de cursar disciplinas práticas como Direção de Arte, Cena e Fotografia, dirigiu seu filme de estreia com uma equipe formada por estudantes e artistas periféricos oriundos das vilas Cacau, Bom Jesus, Campo da Tuca e, claro, do próprio Morro da Cruz.

“Como era a minha primeira vez escrevendo e dirigindo um curta, quis convidar outras pessoas que também estivessem vivendo suas primeiras experiências em seus cargos. A única exceção foi o Maurício, meu professor na Unisinos, que me incentivou a tirar o projeto do papel”, conta o jovem diretor.
Com recursos da Lei Paulo Gustavo, Aconteceu à Luz da Lua tem como principais referências o clássico brasileiro Cidade de Deus e o filme norte-americano Boyz n the Hood, de John Singleton – primeiro diretor negro indicado ao Oscar, e cuja trajetória inspirou Crystom. “Assim como Singleton retratou a comunidade onde cresceu, em Compton, eu quis fazer o mesmo com o Morro da Cruz. Pode ser uma história que se passa aqui, mas ela acontece em todas as vilas de Porto Alegre”, afirma. “O elenco foi pensado para interpretar personagens que já conheciam: um vendedor de pano de prato, um barbeiro…”, completa.
A ideia de retratar a periferia de Porto Alegre surgiu após uma viagem ao Rio de Janeiro. Lá, Crystom conheceu um jovem da Rocinha que se surpreendeu ao descobrir que existiam favelas no Sul do país. O espanto do carioca, quase cético, motivou o diretor a documentar o cotidiano da sua comunidade. De volta ao Morro, passou a registrar festas populares e atividades culturais. “As pessoas me pediam para tirar fotos delas e postar. Querem ser vistas”, relembra.

O curta também presta homenagem a moradores cujas vidas foram interrompidas pela violência. A mãe de um dos personagens, por exemplo, se chama Dona Norma, nome de uma mulher negra assassinada em frente a uma escola na zona leste da cidade. A atriz que a interpreta é sua filha mais nova. Outros nomes, como Marlon, Marcelinho, Marcos Vinícius e João Alberto, aparecem como forma de manter viva a memória de jovens negros que foram vítimas da violência.
Mais do que denunciar, o filme propõe um novo olhar sobre as comunidades periféricas. “A ideia é que quem assista perceba a comunidade para além da violência. Que enxerguem a mãe que se preocupa e o filho que sonha”, conclui Crystom.
