Os rios do Cerrado estão secando. É o que mostra o relatório Cerrado: O Elo Sagrado das Águas do Brasil, publicado pela Ambiental Media em 2025. Segundo o estudo, a vazão dos rios do bioma caiu, em média, 27% nas últimas décadas.
Apesar de ser a savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado continua sendo desmatado, degradado e queimado de forma descontrolada. Isso não acontece sem consequências. Uma das mais graves é a redução da vazão dos rios do Cerrado e a indisponibilidade hídrica nos períodos de seca. Daí essa redução de 27% na vazão de segurança, o chamado Q90, um indicador importante para a gestão dos recursos hídricos.
Os números escancaram o que a paisagem já sussurra há tempos: o Cerrado está se esgotando. E, quando o Cerrado perde água, todo o Brasil sofre as consequências.
Essa redução na vazão dos rios revela a profundidade da crise ambiental que se espalha pelo bioma, que já teve mais da metade de sua vegetação original desmatada. Sendo o Cerrado o coração que pulsa água para oito das doze bacias hidrográficas do país, quando esse coração perde sua capacidade de distribuir água, os demais “órgãos” desse organismo chamado Brasil passam a ser afetados.
Cerca de 93% da água que corre no Rio São Francisco tem origem no Cerrado, especialmente no aquífero Urucuia. Estudos já observaram uma redução de cerca de 50% na vazão desse rio em sua porção localizada no Cerrado. Com isso, é possível prever o agravamento da seca e a escassez de água durante os períodos mais críticos em grande parte da Caatinga, impactando comunidades tradicionais, cidades e atividades como a irrigação.
O rio Parnaíba, por exemplo, depende totalmente da água que vem do Cerrado. O mesmo ocorre no Pantanal, cuja existência está diretamente ligada às águas das cabeceiras que nascem no bioma. O rio Paraná também depende do Cerrado, especialmente para a geração de energia elétrica e irrigação. Vale lembrar que a usina de Itaipu, a maior hidrelétrica do país, recebe cerca de 40% da sua água diretamente do Cerrado.
Com a redução da vazão dos rios, somada ao aumento da demanda hídrica causado pelo crescimento populacional, urbano e agrícola, há uma necessidade urgente de aprimorar a gestão dos recursos hídricos, o que impõe grandes desafios de governança e pode intensificar conflitos.
Quem mais sofre, de forma imediata, são as comunidades tradicionais que dependem da captação direta da água dos rios para irrigação e outras atividades. Já existem diversos relatos de conflitos por água, como o emblemático caso da “guerra da água” em Correntina (BA), além de outros episódios recorrentes em diferentes regiões.
Também podemos esperar o aumento de racionamentos de água em áreas urbanas especialmente as que dependem do Cerrado, além de possíveis racionamentos de energia elétrica ou até apagões, já que a matriz energética brasileira é majoritariamente baseada em hidrelétricas alimentadas por rios que nascem no bioma. Por fim, há ainda o risco de quebras de safra de commodities agropecuárias como soja, milho e algodão, e consequente oscilação ou aumento nos preços dos alimentos, já que a instabilidade climática e a disponibilidade de água são fatores-chave para a produção agrícola. Ou seja, não há quem não sinta ou vá sentir os impactos da redução da água que vem do Cerrado.
O colapso hídrico tem duas causas principais: as mudanças no uso do solo e as mudanças climáticas. A primeira é resultado direto das políticas permissivas que permitem o avanço do desmatamento sobre o bioma ou ainda o descumprimento da legislação.
E, por falar em “políticas permissivas”, não podemos deixar de mencionar que esse cenário pode se agravar ainda mais com a aprovação recente, no apagar das luzes da madrugada do último dia 17, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação. Esse, inclusive, foi o tema da nossa última coluna, já que a proposta flexibiliza drasticamente o licenciamento ambiental no país, abrindo brechas para que empreendimentos se autolicenciem e permitindo que atividades de alto impacto deixem de exigir qualquer tipo de avaliação prévia.
Mas, voltando às causas do colapso hídrico, a segunda, embora global, encontra no Cerrado um cenário particularmente vulnerável. Além da redução das chuvas em mais de 20%, o ciclo chuvoso tem se tornado mais curto e imprevisível, e a evapotranspiração, ou seja, a perda de água do solo e das plantas para a atmosfera, aumentou cerca de 8% devido ao aquecimento. O que vemos é um sistema entrando em colapso por todos os lados.
Frear esse colapso exige mais do que discursos. É preciso interromper imediatamente o desmatamento no Cerrado.
Não há justificativa sensata para seguir destruindo um bioma que já tem mais de 30 milhões de hectares de pastagens degradadas ou subutilizadas, áreas que poderiam ser restauradas ou reaproveitadas. Também é urgente implementar planos já existentes, como o Planaveg, com sua meta de restaurar 12 milhões de hectares, priorizando as áreas mais estratégicas para a produção de água no Cerrado.
É preciso tirar esses planos do papel e concretizá-los de forma robusta com ações de restauração em larga escala, com inclusão de comunidades tradicionais, criando arranjos produtivos locais, gerando empregos e fixando as pessoas no campo. Assim como é urgente acelerar os processos de demarcação dos territórios tradicionais das comunidades que convivem com o Cerrado em pé.
O que está em jogo não é apenas a integridade de um bioma, mas o futuro da vida no país. O Cerrado está pedindo socorro. Seco, esgotado, esvaziado, ele nos obriga a encarar a pergunta que evitamos há décadas: até quando será possível continuar vivendo como se a natureza fosse inesgotável?
Ainda dá tempo de mudar. Mas o tempo é curto e o silêncio, cúmplice.
*Yuri Salmona é fundador e diretor-executivo do Instituto Cerrados. É geógrafo formado pela UnB, com mestrado e doutorado em Ciências Florestais, membro da Rede Cerrado e atua em iniciativas que promovem a conservação ambiental e a participação social no bioma.
**Maria Antônia Perdigão é jornalista, mestre em Comunicação Social e consultora em comunicação socioambiental. Atualmente, é coordenadora de comunicação da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).
***Anabele Gomes é bióloga, mestre e doutora em botânica, servidora do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília, presidente da Rede de Sementes do Cerrado, coordenadora da Araticum e membro do comitê gestor do Redário.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.