“Olhem para mim! E eu não sou uma mulher?”
— Sojourner Truth, 1851
Essa pergunta não é apenas histórica. Ela atravessa os séculos, os salões políticos e os corredores onde nos olham como se estivéssemos no lugar errado. A cada vez que me chamam de confusa por defender o que é certo, de agressiva por falar com firmeza, ou de incapaz por ousar sonhar políticas para quem nunca foi prioridade — eu escuto de novo o grito de Sojourner Truth: E eu não sou uma mulher?
Essa pergunta foi reescrita por Bell Hooks em seu livro poderoso, que dá nome a este artigo e ecoa em mim como um espelho. Porque minha história não começou na política. Começou na periferia da Zona Leste de São Paulo, onde minha mãe lutava por comida e dignidade e meu pai trabalhava em um abrigo de crianças – a maioria negra – abandonadas pelo próprio sistema. Minha história começou nos trens lotados, nos boletos vencidos, no telemarketing. Começou na dor e na coragem de viver.
Mesmo quando me tornei fotojornalista e passei anos registrando a tragédia que cai com mais força sobre os corpos pobres e negros, ninguém me perguntava como eu estava. Porque mulher negra, como disse Bell Hooks, é lida como aquela que suporta tudo. Que aguenta, que dá conta, que não quebra.
Mas eu quebrei.
Quebrei e também renasci. Estudei na Federal, militei, me apaixonei, casei com minha mulher e adotei 10 bichinhos. Fui eleita vereadora numa cidade que não espera muito de mulheres como eu — e talvez por isso eu incomode tanto. Eu vim de onde não era para vir, mas minha existência na Câmara prova que nós podemos governar, legislar e mudar o jogo.
Apesar de toda essa caminhada, até hoje, mesmo com algumas leis aprovadas e quase cem projetos de lei protocolados e com uma mandata bastante ativa, a pergunta paira:
E eu não sou uma mulher?
Porque mulher de verdade, para eles, é a que não fala demais. É a que se submete. A que baixa o tom. A mulher de verdade não é a que luta por tarifa zero, por moradia digna, por parque para o povo negro, por centro LGBT, por aluguel social para mulheres que escapam da violência.
Bell Hooks nos ensinou que o racismo e o sexismo criaram uma mulher ideal que nunca fomos. E por isso nossas lutas são vistas como excesso ou mimimi. Nosso afeto é visto como ameaça. Nossa presença como erro.
Mas, se hoje eu escrevo este texto, não é por mim apenas. É por todas as mulheres negras – e latino-americanas e caribenhas – que empreendem com o que têm. Que criam futuro vendendo bolo, costurando, cuidando, fazendo cabelo, pensando moda, criando arte. Que não têm crédito no banco, mas sustentam famílias inteiras. Que não têm assessoria de imprensa, mas impactam o bairro, a cidade, o país.
É com essas mulheres que eu quero falar, porque elas também escutam essa pergunta em silêncio, quando enviam um orçamento e têm sua capacidade colocada em dúvida, quando entregam trabalho de excelência, mas são pagas com migalhas, quando cuidam de tudo, mas ninguém cuida delas, ou em muitas outras situações.
Dia 25 de julho, dia da mulher negra, latino-americana e caribenha, é um dia em que enxergamos a luta de quem sempre foi invisível e é por isso que especialmente hoje eu quero dizer: todas vocês são, sim, mulheres.
Não apesar da força, mas por causa dela.
Não apesar da dor, mas por não deixarem que ela apague o amor.
Não apesar da luta, mas por fazerem da luta um lar onde todas nós possamos respirar.
Meu papel como vereadora é abrir caminho e meu compromisso é com a verdade: a política não vai mudar enquanto não for feita pelas mãos de quem carrega o mundo sem nunca ter sido convidada para construí-lo.
Como Bell Hooks escreve: “A vida das mulheres negras tem sido uma luta contínua para sermos reconhecidas como humanas.”
Pois que saibam:
Nós somos humanas.
E somos mulheres.
E somos muitas.
E viemos para ficar.