“Deixem que vos chamem racistas. Deixem que vos chamem xenófobos. Deixem que vos chamem nativistas. Usem-no como uma medalha de honra’. Steven Bannon.
Certo sentimento de que as coisas e o mundo estariam “de pernas para o ar” varreu inúmeros círculos de discussão, investigação científica e ativismo político e social a partir da segunda década deste, já intenso e movimentado, século 21. Esse sentimento de surpresa e estupefação revela-se ora como desídia, ora como ignorância. Efetivamente, muito se tratou o fenômeno da ascensão das ideias e valores reacionários e de extrema direita com desinteresse e, mesmo, subestimação. Aquilo que, após a hecatombe e a tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial não se imaginava mais ouvir, passou a ser dito em alto e bom som em todas as partes do mundo.
Valores e termos como xenofobia, racismo, islamofobia, antissemitismo, supremacismo branco, fascismo, neofascismo, nazismo, neonazismo, eliminação, purificação, substituição étnica, rejeição aos imigrantes, nacionalismo, legislações segregacionistas, regressão democrática, ditadura, intervenção militar, negação da ciência e da modernidade, anticomunismo – entre outros novos e velhos dogmas – ressurgiram na agenda mundial deste século 21. Com força e apoio social e empresarial, assumiram um status de naturalidade, razoabilidade e, fundamentalmente, superioridade.
O século 21 marca a incorporação da extrema direita, e dos valores reacionários que a acompanham, aos sistemas políticos em vários países, inclusive liderando governos ou compondo coalizões governistas na América do Sul, América Central e do Norte, Europa, África e Ásia. Seus ideais, valores e percepções passaram a circular com naturalidade no debate público, e a direita tradicional, aquela que ocupou posições seculares de centro democrático, se aproximaram, ou mesmo, aderiram as políticas da direita radical, em especial de extrema direita, alimentando a onda de cultuação ao reacionarismo que se espalhou pelo mundo.
Muitas projeções, certamente engajadas, afirmavam que a supremacia da razão capitalista jogaria as ideologias ao desuso. O percurso da história parece não ter confirmado essa suposição. Ao contrário, o que se observa é que a hegemonia neoliberal, impôs uma crise de valores e condições concretas de vida e perspectivas. O adensamento tecnológico e a experiência das democracias liberais e, até mesmo, das socialdemocracias, não removeram as crises estruturais e a tendência de concentração de riqueza e renovação da pobreza. O resultado é um mundo em ebulição, com amplo questionamento sobre os regimes políticos, a democracia liberal como regime, a democracia como ideal e a eficácia dos governos, crítica que recaiu indistintamente sobre esquerda e centro-direita.
Neste contexto que as correntes políticas mais reacionárias se revitalizaram para apresentar suas soluções aos desalentos da crise mundial. O reacionarismo emergiu resgatando valores do fascismo, do colonialismo, do conservadorismo religioso, do tradicionalismo e do imperialismo. A ideia do fim do conflito entre ideologias, deu lugar a uma polarização renascida entre novas esquerdas e novas direitas.
Os ideais reacionários e a extrema direita acabaram por deixar as margens e a periferia do sistema político e econômico para se incorporar ao quotidiano da política e ao centro da mesa de jogo. A qualificação de direita e de extrema direita deixou de ser mero “rótulo”, pejorativo e intimidador, para ser uma afirmação de princípio e um passaporte que permite angariar apoios e audiência pública.
As novas relações de produção, a escassez de riqueza provocada por sua concentração irrefreável, a modificação veloz das formas de socialização operadas durante os séculos 20 e 21 e a desconstituição do sistema multipolar, criaram um ambiente global de desestruturação das relações, que se mostrou favorável à emergência das respostas da extrema direita e de todo tipo de reacionarismo. Em especial, onde o bloco no poder empresarial-liberal se mostrou incapaz ou desinteressado em manter os direitos sociais das amplas camadas de trabalhadores pobres, emigrados, discriminados, e onde o campo político de esquerda foi arrastado para baixo pelo desmoronamento das estruturas sindicais e dos partidos que passaram a ser vistos como corresponsáveis pela política tradicional, o espaço ficou aberto para a direita reacionária e extremista se apresentar como alternativa de liderança política.
Essa liderança se robusteceu na medida em que essa direita reacionária se apresentou como uma alternativa antissistema. Oferecendo uma explicação que coloca os conceitos democráticos e a democracia liberal como responsáveis pela crise de perspectiva em que essas massas empobrecidas estão envoltas. Os direitos sociais, mais precisamente a equalização de direitos entre distintos grupos empobrecidos, passaram a ser considerados a causa e a razão da crise. Os defensores desses direitos – a esquerda, os democratas, os socialistas, os globalistas, enfim – seriam, portanto, os culpados.
Mas o grande salto desta extrema direita, da desimportância para o centro da política global, se deu quando essa direita reacionária e extremista se apresentou, aos poderosos rentistas, como uma alternativa que reuniria a devida “coragem” para limpar o que seria o entulho restritivo ao livre mercado, resultado de décadas de aquisição de direitos sociais decorrentes do ascenso dos movimentos trabalhistas, movimentos sociais, da luta por direitos humanos e igualdade, dos partidos de esquerda e do bloco de países socialistas. Essa nova onda de ascensão de ideias reacionárias e da extrema direita se assentou em sua adesão ao capitalismo de modo neoliberal. Em todas as partes do mundo, a extrema direita assimilou os preceitos da razão neoliberal, tais como o individualismo radical, a desigualdade social, a meritocracia, a liberdade de empreendimento, a defesa do mercado financeiro e do capital transnacional.
A admissibilidade da extrema direita no sistema político internacional se dá, enfim, pela sua adesão à razão neoliberal, ou seja, a aceitação da inquestionabilidade das políticas de austeridade que possam salvaguardar as relações capitalistas, a partir da combinação do controle do Estado e da hegemonia sobre a opinião pública. A extrema direita e o reacionarismo adquiriram força política e passaram a ser naturalizados à medida que aderiram e passaram a servir com eficiência ao sistema econômico hegemônico
No Brasil, não foram apenas as operações jurídicas, como a prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (favorito nas enquetes de intenção de voto para as eleições de 2018) que deram base ao crescimento político e eleitoral da extrema direita e dos conservadores. As explicações repousam também nas modificações econômicas, ideológicas e culturais em curso no Brasil.
Alterações nas correlações de classe e frações de classe, como novos pesos nas participações na economia – por exemplo o crescimento político e cultural do agronegócio – dão visibilidade e potência a novos valores, novas culturas, novas estéticas, novos padrões de consumo e, fundamentalmente, novos pesos políticos. O avanço da adesão popular às religiões evangélicas, em especial às suas frações fundamentalistas, deu amplitude social ao ativismo político de direita e de suas lideranças no sentido das camadas mais pobres dos brasileiros. A precarização da regulamentação do trabalho, igualmente, contribuiu fortemente para alterar as formas e mecanismos da socialização política, agora baseada na fragmentação e pulverização da comunicação pública, através da expansão das redes digitais. Esse quadro permitiu uma mutação na opinião política de pequenos empresários e setores de classe média empregadores de mão de obra, favorecidos pela redução do custo do trabalho e desregulamentação da atividade empresarial, sob o conceito de liberdade econômica e desburocratização.
As mudanças que se desenrolaram na economia, na sociedade, nas ruas e nas redes digitais acabaram por se refletir na política e nas urnas. A agenda de ampliação de direitos sociais e de equidade foi confrontada pela agenda de combate à corrupção, desregulamentação econômica e pela vontade política de pôr fim aos governos de frente progressista e de esquerda. Esta foi a retórica e a estética do crescimento da extrema direita no Brasil, assim como é no globo. A extrema direita galvanizou uma plataforma de luta contra o mundo moderno, contra o processo de superação da ordem tradicional. Uma agressiva investida contra os avanços civilizatórios em favor dos privilégios dos super-ricos, os donos do sistema financeiro e da máquina militar e do reestabelecimento da lei do mais forte, tão ao gosto dos fascismos.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.