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Nesta coluna, a musicoterapeuta Deyse Araújo escreve sobre capacitismo a partir do cotidiano de famílias atípicas, refletindo sobre as barreiras – visíveis e invisíveis – enfrentadas em contextos c...ver mais

Violência contra pessoas com deficiência: o que (não) se fala no cuidado?

Por Deyse Araújo

A ideia de que cuidar é sempre um ato de afeto esconde o fato de que, muitas vezes, o cuidado é atravessado por relações de poder, controle e tutela

Falar sobre pessoas com deficiência no Brasil exige ir além da acessibilidade e da inclusão formal. É preciso reconhecer que a violência, em suas múltiplas formas, faz parte da realidade de muitas dessas pessoas, especialmente quando estão em situação de vulnerabilidade social, econômica ou institucional.

Essa violência, no entanto, permanece amplamente silenciada tanto nos discursos públicos quanto nas práticas de cuidado. O Sistema Único de Saúde (SUS), assim como os demais serviços públicos, precisa enfrentar essa invisibilidade como parte do compromisso com os direitos humanos.

Capacitismo e violência: dimensões que se entrelaçam

O capacitismo, sistema de opressão que inferioriza pessoas com deficiência, não se manifesta apenas em palavras ofensivas ou na exclusão de espaços sociais. Ele estrutura relações de poder que alimentam violências cotidianas; da negligência institucional ao abuso físico, psicológico, sexual, financeiro e simbólico.

Essas violências, muitas vezes naturalizadas, seguem sendo silenciadas nos registros oficiais. Denúncias contra pessoas com deficiência ainda são subnotificadas, mas os dados disponíveis já revelam um cenário alarmante: a maior parte dessas agressões acontece dentro de casa, em instituições de acolhimento ou nos próprios serviços de saúde, muitas vezes disfarçadas de cuidado ou proteção.

As formas de violência mais recorrentes incluem

  • Negligência no cuidado e abandono: recusa ou ausência de cuidados básicos por parte de familiares, responsáveis ou instituições;
  • Violência institucional: práticas de exclusão, infantilização, omissão de escuta, recusa de atendimento e desrespeito à autonomia;
  • Violência física e sexual: frequentemente silenciadas, sobretudo em pessoas com deficiência intelectual ou múltipla;
  • Violência psicológica: desqualificação constante, silenciamento, imposição de tratamentos, ameaças, ridicularização e isolamento social;
  • Violência patrimonial: retenção de benefícios sociais, exploração financeira ou restrição de acesso a recursos.

Entre todos esses tipos de violência, o ambiente familiar aparece como um dos cenários mais recorrentes e invisibilizados, especialmente quando se trata de mulheres com deficiência.

O contexto familiar e a violência contra mulheres com deficiência

O ambiente familiar, que socialmente é associado à proteção e ao cuidado, pode se tornar o principal cenário de agressões. Mulheres com deficiência enfrentam múltiplas formas de violência, entre elas a física, sexual, psicológica e econômica.

Essa vulnerabilidade é agravada pela sobreposição de capacitismo, machismo e outras opressões, como o racismo e a pobreza. Muitas vezes, essas mulheres são privadas de sua autonomia, têm seus direitos negados e permanecem em silêncio por medo, dependência financeira ou ausência de rede de apoio.

É fundamental que os serviços públicos, especialmente o SUS, estejam atentos a essas especificidades. Identificar sinais de violência, acolher com responsabilidade e garantir a proteção da integridade física e subjetiva de cada pessoa com deficiência deve ser um compromisso cotidiano.

Casos de violência familiar podem emergir a partir de pequenas pistas. Em um atendimento semanal com uma criança com deficiência, por exemplo, mudanças de comportamento, como agitação repentina, recusa ao contato e atitudes auto e heteroagressivas, revelaram, após longo processo de escuta e fortalecimento do vínculo com a mãe, que a família vivia uma situação de ameaça constante. O acolhimento sensível e a confiança construída foram determinantes para que essa mulher se sentisse encorajada a buscar apoio institucional. Situações como essa evidenciam o papel crucial dos profissionais em perceber os sinais e garantir a escuta sem julgamentos.

Por que o cuidado também pode ser violento?

A ideia de que cuidar é sempre um ato de afeto esconde o fato de que, muitas vezes, o cuidado é atravessado por relações de poder, controle e tutela. Pessoas com deficiência ainda são, em muitos espaços, tratadas como incapazes, sem direito à palavra ou decisão sobre seus próprios corpos e vidas.

Isso se agrava em contextos em que há pobreza, baixa escolaridade, insegurança alimentar, racismo, sexismo e outras formas de opressão interseccionadas. O silêncio institucional diante da violência vivida por essas pessoas aprofunda ainda mais o sofrimento.

Cuidado é também enfrentamento político

Falar sobre violência contra pessoas com deficiência é reconhecer que o cuidado só é ético quando considera a escuta, a autonomia, o desejo e a segurança de quem é cuidado. É preciso romper com práticas capacitistas, com o não reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos e com o silenciamento institucional.

Como profissional do SUS, como cidadã: escutar e cuidar são, também, formas de resistência.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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