Querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, vocês sabiam que dois anos antes do odioso golpe militar de 1964 a cidade do Recife sediou, entre os dias 22 e 29 de julho de 1962, a Conferência do Nordeste: Cristo e o processo revolucionário brasileiro? Pois foi, meu povo!
Aquele evento, realizado pela extinta Confederação Evangélica do Brasil (CEB), alcançou igrejas de diferentes denominações cristãs não-romanas em todo o país. E neste mês de julho de 2025, esse acontecimento completou 63 anos e eu não poderia deixar de conversar sobre ele com vocês, gente criticamente interessada nas relações entre religião e política.
Não surpreende o silêncio sobre a Conferência e seu legado histórico no atual cenário político-religioso do nosso país. Afinal, hoje temos lideranças nacionais cujas denominações eram ligadas àquela realização progressista e que agora vemos aliarem-se, sem quaisquer disfarces, às forças demoníacas do regressismo neofascista – eles estão com efetividade renovada no país desde o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016.
Por isso mesmo importa reconhecermos a firmeza de fé e fibra moral das irmãs e irmãos que realizaram aquela Conferência, já que, como hoje, o Brasil de 1962 se via numa encruzilhada histórica.
Na ausência de registros audiovisuais, cabe à crônica de Waldo César, Secretário Executivo do Setor de Responsabilidade Social da Igreja da CEB, dar-nos acesso poético àquele momento: batistas, metodistas, presbiterianos, episcopais-anglicanos, luteranos, congregacionais, reformados, pentecostais… irmãs e irmãos de 16 denominações somaram 167 participantes de 17 estados brasileiros, além de convidados estrangeiros.
Auditório, salas e corredores do Colégio Presbiteriano Agnes Erskine tornaram-se espaço de uma assembleia permanente, reunindo diferentes pessoas para, a partir da fé evangélica, pensar o Brasil desde o Nordeste, região que se fazia, então, “centro das preocupações da política nacional e internacional”.
Para Raimundo Barreto, poucos eventos marcam tanto o engajamento social progressista de pessoas cristãs na América Latina quanto a Conferência de 1962. Ainda segundo ele, a iniciativa antecipou o que hoje chamamos de Teologia Pública ou Política.
O fato é que, apesar de suas internas divergências – acessíveis nos textos de suas preleções –, a Conferência, superando a ideia de que seja a religião um assunto apolítico, denunciou profeticamente tentativas de privatização da fé cristã e anunciou, em tonalidade messiânica, a arena pública como seu primordial lugar de expressão.
Escolhida a dedo pela organização do evento, a capital pernambucana era um verdadeiro caldeirão de tensões sociais, a ponto de ser apelidada de “Moscouzinha brasileira” pelas forças reacionárias da época. Exemplar dos efeitos das contradições do capitalismo no país, nossa região Nordeste, a mais empobrecida, então, pelas iniquidades que sustentam esse sistema social, fazia-se símbolo da luta por suplantar um passado escravocrata.
O desejo por vencer este sistema se expressava nas reformas de base (agrária, urbana, bancária, tributária, educacional e política), assumidas como necessárias pelo governo João Goulart, em positiva resposta às reivindicações populares pela superação do arcaísmo oligárquico e aprofundamento da democracia entre nós. As Ligas Camponesas foram, nesse sentido, paradigmáticas.
Realizar a Conferência em Recife foi, portanto, uma ousadia do Setor de Responsabilidade Social da Igreja, que, em coerência ao Ide do Nazareno (Marcos 16.15), permitiu às participantes alguma medida de encarnação cristológica na realidade concreta do povo empobrecido. Para tanto, inovou também no seu formato, convidando para contribuir com a Teologia Cristã a inteligência científica brasileira contemporânea.
Por isso vemos entre as palestrantes os nomes de pessoas como Celso Furtado, Juarez Rubens Brandão Lopes, Gilberto Freyre e Paul Singer. Algumas delas, de aberta orientação marxista, fato inaudito em encontros de igrejas. Nas palavras de Waldo César, tratava-se de “tomar contato com a realidade brasileira, interpretá-la à luz da revelação cristã e buscar soluções evangélicas para os problemas do momento”.
Inspirados naqueles diálogos entre inteligência científica e teológica – ali representada por nomes como Almir dos Santos (metodista), Joaquim Beato e João Dias de Araújo (presbiterianos) e Edmund Knox Sherrill (episcopal-anglicano) – os grupos de trabalho produziram “recomendações” que, organizadas em duas “fronteiras”, a “econômica” (grupos: urbano, industrial e rural) e “cultural” (grupos: educacional, estudantil e de arte e comunicação), fazem-se, até o presente, desafiadoras e inspiradoras.
Nelas, afirma-se, dentre outras, a necessidade de defesa da imediata reforma agrária no país, do compromisso com a organização de círculos de alfabetização de adultos inspirados no método Paulo Freire, com iniciativas de cooperativismo de crédito e consumo e com o sindicalismo, além da necessidade de nossas liturgias buscarem envolvimento profundo com os movimentos de arte popular engajada.
Por uma semana, o mundo cristão não-romano brasileiro – então uma minoria religiosa – esteve nas manchetes regionais e nacionais. O governador de Pernambuco, Cid Sampaio, participou de várias sessões do evento e o presidente João Goulart enviou telegrama e representação oficial.
Para a organização, que conhecia bem a ação do regressismo dentro e fora de suas igrejas, essa visibilidade se fez acompanhar de esperança e temor. De fato, o contexto de 1962 já prenunciava os processos político-institucionais que culminaram no golpe de 1964 e estabelecimento da ditadura militar (1964-1985). Durante os 21 anos seguintes, um pesado coturno sufocaria as esperanças democráticas do país.
Aproveitando-se da disseminação global do macarthismo e de suas influências na cultura religiosa cristã brasileira, lideranças eclesiásticas aliadas à forças elitistas do atraso nacional não tardaram em denunciar o que reputaram como demasiada politização da fé cristã na Conferência, acusando suas lideranças de comunismo.
Sabe-se hoje que, meses antes da Conferência, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) vigiava os principais nomes por trás do evento. Um agente chegou a procurar Waldo César em 1960 para sondar o tema do encontro e, em 1963, um coronel do Exército visitou a sede da CEB questionando as atividades do SRSI.
Após o golpe, a resposta das forças reacionárias foi rápida e dura: a CEB foi enquadrada, o SRSI desmantelado, arquivos apreendidos e diversas lideranças foram expulsas de suas igrejas e oficialmente denunciadas como subversivas aos órgãos de repressão. Várias delas tiveram que se exilar para escapar da perseguição política. Como Waldo afirmaria em entrevista concedida décadas depois, em grande medida “a Igreja deu o golpe antes”.
A Conferência de 1962 foi a última reunião promovida pelo SRSI/CEB, fazendo-se, a um só tempo, ápice e ocaso de um movimento apenas nascente. Em 1963, sob intensa pressão, a CEB suspendeu indefinidamente as atividades do SRSI. Em ação desde 1934, a própria CEB encerraria suas atividades em 1970.
A Ditadura Militar mergulhou os setores progressistas das igrejas brasileiras num silêncio forçado, abrindo um espaço planejado à infiltração das forças reacionárias do imperialismo estadunidense entre nós, travestidas em movimentos teológicos e litúrgicos que avançariam firmemente contra seminários, editorias, fonografias, movimentos jovens e órgãos e instâncias dirigentes das denominações, em alguns anos hegemonizadas pelo fundamentalismo.
Esse movimento foi diretamente responsável pelo enfraquecimento e quase morte da ação social ecumênica no país. Obviamente, a ação do Espírito, impetuosa em seu insistente silêncio (João 3.8), impediu o total apagamento da brasa daquele fogo. Várias participantes da Conferência continuaram atuando discretamente dentro e fora do país. Em particular, em redes clandestinas de promoção dos direitos humanos durante os anos de chumbo.
Essa sagrada insistência daria origem a organizações como o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), dentre outras, e à sistematização de todo um consistente movimento de teologia protestante crítica na América Latina.
Seis décadas se passaram. O nosso é certamente um outro Brasil que o de 1962, embora seus desafios permaneçam dolorosamente atuais e complexificados. Sobre isso, não deixam dúvidas o golpe de 2016 e as regressões civilizatórias que a ele se seguiram: desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários, estabelecimento de um desumano teto para gastos com políticas públicas, dentre outros.
E o pior: tudo isso com o apoio majoritário de um grupo de políticos autointitulados “bancada evangélica”, que, na contramão do Mestre e sua mensagem, faz-se linha de frente no estabelecimento do projeto neoliberal de injustiça e precarização da vida do povo trabalhador. A alardeada expansão evangélica entre nós tem se traduzido, portanto, em um poder político iníquo, cujos efeitos vão já muito longe daquilo que o Senhor ensinou e tão seriamente nossas irmãs e irmãos da Conferência de 1962 planejaram e recomendaram.
Ainda assim, vemos sementes teimosas brotando nas frestas das contradições eclesiásticas. Aos poucos, emerge uma nova geração de “evangélicos de esquerda”, os quais, no espírito da Conferência, têm formado redes ecumênicas de prática e disseminação da tradição profética evangélica.
As lideranças têm promovido círculos bíblicos em ocupações do MST e MTST, engajando-se em campanhas populares – a exemplo do Plebiscito Popular por um Brasil mais Justo –, na luta sindical, na defesa dos direitos humanos e das causas de justiça (gênero, étnico-racial etc.), enfim, nas palavras do Revdo. Dr. Kenneth Mtata, diretor do programa de testemunho público e diaconia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), têm desenvolvido “teologias de vida, justiça e paz” capazes de desafiar o status quo em profundo compromisso com as pessoas oprimidas.