As águas de julho abriram o inverno de maneira triunfante. Apesar da chuva constante, o “Hellcife” conseguiu experimentar um clima ameno nos meses de junho e julho de 2025. Bem que o curta-metragem “Recife Frio”, dirigido por Kleber Mendonça Filho, havia nos alertado anos atrás.
No curta— trágico ou comédia (?) — a criatividade corre solta. A trama parte da queda de um meteorito que muda completamente o clima da capital pernambucana. Spoiler: chega até a nevar na cidade.
E já que começamos com esse clima lúdico, vale lembrar que a capital se autodenomina “Veneza Brasileira”, por ser cortada por três rios — o Beberibe, o majestoso Capibaribe e o Tejipió — além de seus 99 canais. O Recife é uma cidade encantadora, com uma paisagem única entre seus morros, planície e mangue.
No entanto, a dura realidade é que essas mesmas águas que moldam a beleza da cidade são diariamente maltratadas pela poluição – tanto nas áreas mais ricas quanto nas mais pobres — e pela cegueira coletiva diante do colapso climático que se desenha.
As chuvas quase diárias deste inverno, hora fracas, hora moderadas, acompanhadas das “baixas” temperaturas, carregam um significado mais profundo no século 21. Neste combo climático, somam-se o aumento do nível do mar e os alertas cada vez mais urgentes da ciência. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Recife está entre as cidades mais vulneráveis do mundo às mudanças climáticas.
Tudo indica que vivemos, em tempo real, o fenômeno climático-oceânico conhecido como La Niña, caracterizado pelo resfriamento anormal das águas do Oceano Pacífico. Aqui no Nordeste, esse fenômeno tem se traduzido em um aumento considerável no volume de chuvas.
Não é à toa que resiliência e adaptação climática tornaram-se palavras-chave nos jornais, congressos e pesquisas diante do mega desafio da mudança climática — ou, para muitos, emergência ou crise climática. Afinal, esses conceitos estão diretamente ligados ao modo como desenhamos nossas cidades e como as “consumimos”.

Já do outro lado do oceano, registramos que na Europa Ocidental, segundo o programa Copernicus, teve o junho mais quente da história. Por lá, literalmente, pegou fogo: duas ondas de calor consecutivas e precoces marcaram o mês. Vale lembrar que até meados dos anos 2000 as ondas de calor antes do verão eram eventos raros por aquelas bandas. Dizem que, por lá, essas ondas se tornaram tendência. E por aqui, será que o clima mais ameno e chuvoso no Recife começa a configurar uma nova normalidade? Lançamos a pergunta.
Então, o que fazer nesse possível novo cenário desafiador? Um exemplo inspirador vem da capital da Coreia do Sul: a revitalização do rio Cheonggyecheon, em Seul, inaugurada em 2005. O projeto envolveu a demolição de um viaduto da década de 1970, desapropriações, o resgate de um rio soterrado e a criação de um parque urbano que devolveu o espaço público à população – como destacou a plataforma do Programa Cidades Sustentáveis: “Seul encontrou vida sob o asfalto”.
A restauração do Cheonggyecheon tornou-se um marco na história urbana da cidade. Um projeto ousado, pensado de forma ampla e coletiva, que gerou resultados notáveis. Destaco alguns para que você possa imaginar minimamente mudanças estruturais no desenho das cidades:
- Melhoria significativa da qualidade do ar;
- Temperaturas de 3ºC a 4°C mais baixas em relação a áreas a apenas 400 metros de distância, com velocidades do vento 50% mais altas do que antes da restauração;
- Criação de um corredor verde com 8 km de extensão e 730 metros de largura, incluindo um parque de 400 hectares com cachoeiras, pontes e pistas de corrida;
- Funções ecológicas restauradas, como habitat para a vida aquática, controle de inundações e atração turística;
- Melhoria na mobilidade urbana, com ampliação dos serviços de ônibus e redução do tráfego de veículos particulares;
- Aumento expressivo no valor das propriedades próximas ao rio revitalizado.
Projetos como esse mostram que há ambição — e futuro — em diversas partes do mundo que buscam mudar o paradigma urbano e ambiental. São propostas complexas, que pensam grande, de forma integrada e com horizonte de longo prazo.
Por aqui, reforço que como sociedade não podemos normalizar um canal transformado em esgoto a céu aberto. Os rios e canais do Recife deveriam ser nossos refúgios nos tempos de “Hellcife” — especialmente quando o mar é território de tubarões, e não de humanos. Afinal, não somos a “Veneza brasileira”?

Tampouco podemos aceitar o descaso com o transporte público – mesmo que você não seja um “usuário cativo”. Afinal, o setor de transportes é um dos maiores emissores de gases de efeito estufa e consequentemente do aquecimento global. No Brasil, ele responde por cerca de 47% das emissões do setor energético, segundo o SEEG — Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa.
Como dizia Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá: “A cidade avançada não é aquela em que os pobres andam de carro, mas aquela em que os ricos usam transporte público.”
Digo e repito: tudo o que aprendemos como técnicos, políticos ou sociedade no século passado não basta para enfrentar os desafios do século 21. Precisamos urgentemente mudar a cultura e práticas arraigadas há décadas.
Nesse cenário, se não promovermos mudanças estruturais profundas em nossa sociedade, nem o meteorito será necessário — vai nevar no Recife. Peguemos a pipoca e aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
Diante da nossa insistente negação coletiva da crise climática e das profundas desigualdades sociais escancaradas na nossa cara diariamente, resta-nos esperançar. Do contrário, a música da Nação Zumbi continuará a nos retratar com precisão dolorosa:
“Rios, pontes e overdrives — impressionantes esculturas de lama;
mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue;
e a lama come mocambo e no mocambo tem molambo e o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia, o carro passou por cima e o molambo ficou lá;
molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu.”
Até quando seremos molambos?