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Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS

Dormiu em serviço? Justa causa!

Tem acontecido cada vez com maior frequência: demandas trabalhistas que buscam reverter a justa aplicada porque o trabalhador dormiu em serviço

Tem acontecido cada vez com maior frequência: demandas trabalhistas que buscam reverter a justa causa aplicada porque o trabalhador dormiu em serviço. Quando há prova, o “flagrante”, em regra, é feito por um condômino que volta de madrugada para casa ou pelo colega que, na função de supervisor, surpreende o trabalhador cochilando.

A instrução desses processos costuma ter uma dose adicional da violência que, de algum modo, atravessa todas as audiências trabalhistas. É sobre essa violência que quero escrever hoje. Ela inicia com a autorização legal de despedir sem pagar praticamente nada e impedindo que o trabalhador acesse o FGTS e o seguro-desemprego. Impedindo-lhe, portanto, de pagar o aluguel do mês ou fazer o supermercado da semana seguinte. Como regra, alguém despedido por justa causa recebe apenas o salário.

Sequer se trata, portanto, de discutir a violência que está contida no ato de despedir. Em uma sociedade que honrasse o fato de suas regras serem fundamentadas na proteção à dignidade humana e seu objetivo ser promover o bem comum, despedir deveria ser um problema social tratado com a gravidade que efetivamente tem. Ao contrário, a jurisprudência majoritária – apoiada na legislação trabalhista transfigurada pela “reforma” – segue admitindo a despedida sem que haja sequer motivação lícita por parte do empregador. Mas essa é uma outra história.

O que estou problematizando aqui é a despedida com alegação de falta grave. A CLT estabelece hipóteses de falta grave de quem trabalha e de quem emprega, mas dá a cada uma delas consequências diversas. O empregador que comete falta grave não sofre penalidades nem perdas. Ao contrário, ganha o tempo do processo. A trabalhadora ou trabalhador acusado de falta grave perde, além do emprego, praticamente todos os direitos que decorrem da despedida. Como se a perda do emprego não fosse já em si algo extremamente grave em uma realidade, na qual sem trabalho remunerado não há acesso sequer ao alimento.

Essa violência é naturalizada e escondida atrás de fórmulas amplamente aceitas pelo sistema de justiça, como a de equiparar faltas, atrasos ou o ato de dormir durante a jornada à desídia.

Desídia é desleixo, incúria, negligência. Na minha experiência atuando na magistratura trabalhista, não lembro de situações em que faltas, atrasos ou cochilos tenham ocorrido por desleixo. Costumo ouvir sempre a trabalhadora ou o trabalhador acusado de falta grave, até porque a Constituição garante expressamente o direito à ampla defesa e ao contraditório, que deveria ser oportunizado antes mesmo do processo e da aplicação da penalidade.

Já testemunhei relatos de trabalhadoras mães, cujos filhos adoeceram e por isso tiveram de faltar. Ouvi trabalhadores que tiveram de atender problemas graves de saúde (seu ou de um familiar) ou enfrentar questões decorrentes da contingência do que é ser humano, como uma separação conturbada ou a ausência da pessoa que auxilia com o cuidado de idosos ou crianças da família. Mulheres trabalhadoras que faltaram por estarem enfrentando situação de violência doméstica e que esconderam essa realidade de seus empregadores, por temerem justamente a perda do emprego.

Quando a alegação é de dormir no trabalho, esses trabalhadores frequentemente relatam que não trabalham apenas num local. As empresas os chamam para “cobrir faltas” de outros colegas, fazendo com que dobrem os turnos. Mudam  constantemente o local da prestação dos serviços e o regime de horas: 12×36; 5×2; 6×1; turno da manhã; intermediário; noturno.

Num dos casos, o trabalhador  dobrava escala (a seu pedido, claro, como fez questão de sublinhar o representante da empregadora), trabalhando todas as noites, seis dias da semana, há pelo menos 1 ano. Não podia fruir intervalo, mas a empresa fazia o pagamento da “hora intervalar” no contracheque, como autoriza a “reforma” trabalhista.

Em outro caso, a empregadora apresentou o vídeo que provava o cochilo. Assisti-lo foi difícil. O trabalhador tinha de permanecer sentado, em uma peça pequena (guarita), em frente ao monitor, com as luzes desligadas (por questão de segurança do condomínio). No vídeo, era possível perceber a luta desse trabalhador contra o cansaço, durante a madrugada. Sua cabeça pendeu para frente algumas vezes, ele bateu no próprio rosto, sacudiu o corpo e seguiu sentado, como lhe tinha sido determinado. Alguns minutos depois sucumbiu. Cochilou. Seu corpo não resistiu ao cansaço.

A função de vigilância – especialmente armada – é a prova de uma sociedade em que bens materiais valem mais do que a vida. Que pessoas sejam utilizadas como escudos para proteger condomínios ou residências já devia ser também algo questionável. Mas nem é disso que se trata e sim de considerar de algum modo justificável impor a um ser humano que permaneça 12h trabalhando em um lugar escuro, silencioso e vazio, durante a noite, sem dormir.

Aqui talvez fosse o caso de referir dados sobre a relevância do sono; a importância de dormir à noite; os efeitos da privação dessa função fisiológica para o corpo humano. Não vou perder tempo com isso, pois todas sabemos bem o que significa passar uma noite acordada. Todas as pessoas que já realizaram função no período noturno sabem bem que o sono do dia não compensa aquele da noite.

Há uma razão para que a maioria das pessoas tenha e exerça a possibilidade de dormir à noite. Mas isso, sinceramente, nem importa tanto. Importa refletir sobre qual a possibilidade que temos de escolher não dormir, quando as forças do corpo se exaurem e por que essas forças se exaurem. É saber como se naturaliza que, diante do falimento do corpo, por exaustão, a resposta de quem emprega seja a punição.

Eis o ponto central da questão: hoje discutimos a necessidade de redução do tempo de trabalho, com o movimento Vida Além do Trabalho, que tem como emblema o fim da escala 6 x 1. Esse movimento toca o âmago da questão: as pessoas estão doentes de capitalismo. Em vez de reduzir o tempo de trabalho, impedir que seja constantemente noturno, reconhecer a inconstitucionalidade da jornada de 12h, da supressão do intervalo, da escala 6 x 1, o que se tem feito, diante da evidência física desse sofrimento, é despedir com alegação de falta grave.

Trata-se, portanto, de mais uma violência, cujo subtexto é o de que esses corpos trabalhadores existem para servir. Por isso, podem ser constrangidos a permanecer acordados mesmo quando exaustos e, se não suportarem e dormirem, podem ser despedidos. Esse é o tema urgente a que o movimento pelo fim da escala 6 x 1 põe luz. Não apenas a cruel extensão do tempo de trabalho e tudo o que trabalhar seis dias por semana, 12h por dia ou durante a noite pode causar no organismo humano, mas também o que gera em termos de adoecimento social.

Ninguém dorme no serviço porque acha bom. Se quiser dormir, certamente preferirá estar em sua casa. Se dormiu enquanto devia vigiar, há algo errado, sem dúvida. Longe de ser do trabalhador, porém, o erro é de quem exige essa condição desumana de trabalho e de quem a naturaliza.

Quando falo sobre isso, escuto com frequência o argumento de que é preciso disciplinar o empregado. Despedi-lo, pagando a sua rescisão, é de algum modo premiá-lo por sua atitude faltosa.

Curioso, porque essa mesma ânsia punitiva não aparece, quando se trata de delinquência patronal. Ao contrário, deixar de depositar o FGTS, embora seja hipótese típica de justa causa (art. 483, d, da CLT), é muitas vezes considerada uma falha incapaz de sustentar a declaração de rescisão indireta. Sem mencionar que, mesmo reconhecida a falta grave do empregador, nada lhe é imposto além das verbas que já pagaria em caso de despedida.

Mas nada disso parece importar.

É a tal racionalidade escravista que uma vez mais se revela: a punição é a forma de reforçar a condição de inferioridade de quem vive do trabalho e deve ser grato por receber salário.

Punir com a perda do emprego e dos direitos que decorrem da despedida é algo nitidamente incompatível com a ordem constitucional, seus fundamentos e objetivos. Não há justiça social, nem isonomia, quando o assunto é justa causa. Aplicá-la porque o corpo se entregou ao cansaço é cruel. Não se sustenta na literalidade da norma trabalhista, nem em qualquer discurso que tenha mínimo compromisso com o que se convencionou chamar dignidade humana.  É a antítese de tudo o que se escreve e defende em termos de proteção social. Um corpo exausto não precisa de punição; precisa de cuidado.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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