O Fórum Central de Porto Alegre se prepara para uma audiência de instrução decisiva, nesta quarta-feira (13), no processo que investiga a morte da promotora legal popular (PLP) Jane Beatriz da Silva Nunes. A sessão, que ouvirá testemunhas, oficiais militares, peritos e os oito policiais militares do Batalhão de Choque acusados de homicídio, é vista pela assessoria jurídica da vítima como um momento crucial para a responsabilização do Estado e um teste para o sistema de justiça brasileiro.
Para a advogada da família, Eduarda Garcia, a audiência representa um avanço significativo após uma longa jornada processual. “Estamos numa etapa avançada, depois de uma denúncia do Ministério Público por homicídio doloso e de um julgamento do Tribunal de Justiça que indicou existirem elementos concretos para a denúncia”, explica. “Agora, adentramos nos elementos de prova sobre o nexo causal entre uma abordagem ilegal, uma invasão de domicílio, e a morte de Jane em razão desse episódio estressor. É um avanço importante que fortalece também o futuro processo de reparação para a família”, afirma ao Brasil de Fato RS.
Jane Beatriz, uma mulher negra de 60 anos, servidora pública e respeitada líder comunitária na vila Cruzeiro, morreu em dezembro de 2020 na porta de sua casa. A versão oficial inicial apontava para uma queda acidental seguida de um aneurisma, mas testemunhas e a comunidade sustentam que ela foi empurrada por um policial durante uma abordagem truculenta. Nunes era promotora legal formada pela ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos.

Os oito policias do Batalhão de Choque da Brigada Militar tornaram-se réus pela morte em dezembro de 2024 quando o Tribunal de Justiça do RS (TJ-RS) aceitou a denúncia do Ministério Público (MP). Na ocasião a defesa dos policiais afirmou à imprensa que a morte de Jane foi natural. “Pelo que foi possível compreender, acreditamos que o Tribunal tenha ignorado o Laudo Pericial, partindo de premissas equivocadas, interpretando de modo bastante amplo e sem conexão jurídica a morte de Jane que foi atestada ser por causas naturais.”
Segundo a nota da defesa, o aneurisma, o seu rompimento, foi demonstrado pelo perito oficial que, aliás, é neurologista, como sendo preexistente e os fatores que levaram ao rompimento são totalmente imprevisíveis, mas, no mínimo, decorrentes de questões clínicas preexistentes. Também as investigações de ambas as instituições foram claras em dizer que não houve crime dos policiais.
No dia da morte, moradores da região da Cruzeiro realizaram protestos pedindo justiça e denunciando o caso como resultado de violência policial.

“As promotoras legais populares são um dos suportes mais importantes na escuta das mulheres, pois atuamos antes até da delegacia. As mulheres da comunidade sabem que podem contar conosco, que vamos ouvi-las. Muitas vezes, as situações de violência só chegam na delegacia porque nós estamos nas comunidades e conversamos com estas mulheres”, explica a promotora legal popular Malvina Beatris de Souza, conselheira diretora da Themis.
“A morte de Jane fez com que nos sentíssemos mais responsáveis pelos cuidados com as promotoras legais populares, nos chamou para a responsabilidade com o que estava acontecendo com as PLPs, que são mulheres cuidando de mulheres. Tem um momento em que cuidamos de todo mundo, mas, como PLPs, não nos cuidamos a nós mesmas. A morte da Jane nos fez entender que não somos super mulheres e que também estamos vulneráveis. A Themis passou a cuidar ainda melhor de suas PLPs e a fortalecer ainda mais cada uma delas”, pontua Souza.
O desafio legal: conectar a ação policial à suposta “morte natural”
O cerne da disputa jurídica, segundo Garcia, é provar a relação direta entre a conduta dos agentes e o rompimento do aneurisma e elucidar as circunstâncias de sua queda. “O desafio é demonstrar no processo, por uma série de elementos concretos, que Jane não morreria naquele dia independente da ação da Brigada Militar”, argumenta a advogada. “O aneurisma, que foi atestado pelo laudo pericial, está relacionado, ele tem um nexo causal. O próprio Tribunal de Justiça, ao analisar o caso, já indicou que existem elementos concretos nesse sentido.”
A acusação busca desconstruir a narrativa de uma fatalidade inevitável. “Precisamos combater a naturalização da violência policial, como se fosse algo corriqueiro e como se as pessoas da comunidade não se sentissem extremamente violadas, nervosas. Isso está relacionado à questão de saúde pública, à forma como somos submetidos a eventos estressores o tempo inteiro a partir dessa vigilância da ‘guerra às drogas'”, pontua Garcia.

“A evidência do racismo está na diferença de tratamento”
Para a advogada, o caso de Jane é um retrato explícito de racismo institucional. A justificativa usada para a invasão da residência, uma suposta denúncia de maus-tratos infantis, é questionada pela defesa, que aponta a falta de competência do Batalhão de Choque para tal averiguação e que questiona quais são os procedimentos e manuais para atuação de forças especiais.
“O modo como a casa foi revistada, narrado pelas testemunhas, não é compatível com uma investigação de maus-tratos, mas sim com uma investigação relacionada à ‘guerra às drogas’. É a entrada sistemática da polícia nas residências e a presunção de que as pessoas que moram na comunidade têm possível envolvimento com o crime”, detalha.
“A gente vê essa evidência da prática de racismo na discrepância e na diferença de tratamento da polícia. Nós não vemos o Batalhão de Choque averiguando denúncias de maus-tratos a crianças em bairros como o Moinhos de Vento. Essa é a evidência da prática da discriminação através da violência institucional.”
Justiça, memória e reparação
A expectativa da acusação vai além da esfera penal. De acordo com a advogada trata-se de buscar um reconhecimento do erro do Estado, honrar a memória de Jane e reparar os danos causados não apenas à família, mas a toda uma comunidade que perdeu uma de suas referências.
“A justiça, para nós, não é somente a responsabilização penal dos policiais. É que o Judiciário reconheça e responsabilize atos de agentes públicos que transbordam os contornos legais”, afirma Garcia.
“Nossa expectativa é que a memória de quem foi Jane esteja muito presente e que haja um reconhecimento público de que houve um erro por parte das forças policiais. Que não é assim que esses organismos estatais devem se relacionar com comunidades inteiras que geralmente passaram por um processo de vulnerabilização social, psíquica, política e racial.”
O resultado do julgamento, conclui a advogada, terá um impacto duradouro. “Esse caso é um teste para o nosso sistema de justiça. O desfecho vai enviar um recado à sociedade: ou vai se reforçar a tolerância à violência policial contra corpos negros, ou vai afirmar que ninguém está acima da lei. Honrar o legado de Jane é exigir que a justiça funcione para todos. É um passo fundamental na luta por uma segurança pública cidadã, em que os procedimentos legais respeitados nos bairros nobres sejam também respeitados nas comunidades.”