O campo político que sustenta o projeto popular para o Brasil, no contexto da esquerda brasileira, está ancorado em sete compromissos fundamentais: desenvolvimento, sustentabilidade, democracia, solidariedade, feminismo, igualdade étnico-racial e soberania nacional.
Esse último — a soberania — atravessa a história do país com diferentes roupagens. Das lutas por libertação nacional no século XIX aos projetos de industrialização e modernização do século XX, passando pelas campanhas contra a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e os governos progressistas da América Latina no início do século XXI, a ideia de um Brasil Soberano esteve no centro desses debates políticos.
Além da trajetória brasileira, temos a inspiração do nacionalismo revolucionário latino-americano — presente da Revolução Haitiana, passando pela Revolução Cubana, ao processo bolivariano, que nos brinda com a concepção de integrar, de forma indissociável e incontornável, soberania nacional, democracia popular e transição ao socialismo.
Hoje, um dos campos mais visíveis da luta de classes no Brasil se dá em torno dos símbolos nacionais. Ou seja, esses temas históricos se recolocam. De um lado, setores populares que reivindicam esse legado das lutas históricas pela independência e pela democracia. De outro, a extrema direita que tenta sequestrar esses símbolos e configurá-los sob a lógica de um patriotismo de viés autoritário, em muitos casos com traços fascistas.
Nesse cenário, ainda que não esteja na moda, o nacionalismo revolucionário precisa ser resgatado como paradigma da esquerda e a soberania entra em campo como a luta que mobiliza as táticas de luta.
Soberania na prática: o caso do “tarifaço” e seus reflexos
O chamado “tarifaço” imposto pelo governo de Donald Trump — com a elevação de tarifas sobre produtos importados pelos EUA — acendeu alertas em países exportadores como o Brasil. Mais do que uma medida pontual, o episódio expôs a vulnerabilidade da economia brasileira diante das oscilações do comércio internacional e a necessidade urgente de fortalecer a indústria nacional.
A resposta a uma guerra fiscal passa pelo investimento em produção interna, por maior autonomia nas cadeias de suprimentos e, também pela diversificação de parceiros comerciais, levando em conta o multilateralismo da geopolítica global.
A crise capitalista durante a pandemia da covid-19 reforçou esse diagnóstico: a crise atingiu diretamente a produção pelas medidas de isolamento social em diversos países. Esse processo de interrupção das cadeias globais de suprimentos e de mercadorias levou países do centro capitalista a reavaliar a forma de distribuição das cadeias produtivas, numa corrida pelo chamado “salto tecnológico”, uma busca acelerada por novos paradigmas tecnológicos (indústria 4.0, inteligência artificial).
Já para os países da periferia do capitalismo, a tendência de um deslocamento da produção industrial de ponta para a Ásia de modo que países dependentes como Brasil estão sendo cada vez mais empurrados a postos mais baixos das cadeias produtivas globais, alijados dessa nova rodada de tecnologia, afirmando um aprofundamento das relações desiguais entre países do centro e dependentes.
Políticas públicas como instrumentos de soberania
Diante do acirramento das relações desiguais entre centro e periferia e a intensificação da exploração nos países dependentes como o Brasil o governo federal lançou uma série de iniciativas estratégicas com potencial de reposicionar o país nesse cenário. Entre elas, destacam-se:
- Nova Indústria Brasil (NIB) – coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), visa criar condições para revitalizar a indústria nacional com foco em desenvolvimento tecnológico, proteção de setores estratégicos e sustentabilidade ambiental.
- Novo PAC – retomado no governo Lula, o programa aposta em infraestrutura, geração de empregos, transição energética e redução das desigualdades regionais.
- Plano de Transição Ecológica e Energética – sob responsabilidade do Ministério da Fazenda, propõe uma matriz energética baseada em fontes renováveis e tecnologias verdes, com foco em inovação nacional e proteção dos biomas brasileiros, como a Amazônia. O compromisso internacional e a chamada “diplomacia verde” também se destacam, abrindo espaço para o país se posicionar como liderança ambiental global, com envolvimento da sociedade civil e das comunidades locais.
- Transformação do Estado e Governo Digital (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos – MGI), que se coloca como um contraponto à Reforma Administrativa – com ênfase na soberania digital, segurança cibernética e controle de infraestrutura crítica de dados, composição do Estado, direitos trabalhistas.
- Além dessas políticas, vale destacar os programas “Imóvel da Gente” (Secretaria do Patrimônio da União – SPU/MGI) e “Terra da Gente” (Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA), que enfrentam questões fundiárias estruturais como a reforma fundiária e o ordenamento territorial.
- Processos Participativos (Secretaria-Geral da Presidência da República – SGPR) que experienciam novos formatos de participação social com a retomada de conselhos e conferências. Participação digital, metodologia de Agentes Populares etc
- E, na política externa, sempre é importante destacar a postura do presidente em relação ao genocídio na Palestina, que reafirma uma posição soberana e ética frente a temas sensíveis da política global.
Mais do que programas pontuais, essas iniciativas – em potência – carregam disputas de fundo sobre o lugar do Brasil no mundo. Buscam criar condições concretas para problemas históricos, que exigem a construção de uma força social capaz de sustentar, ampliar e aprofundar essas transformações
Disputar a soberania nacional: qual o nome do jogo?
Na conjuntura, o governo Lula também tem colocado bola pra jogo, como o tema da taxação dos super-ricos e o compromisso de tirar o Brasil do mapa da fome. Trata-se de políticas que articulam justiça fiscal, distribuição de renda e segurança alimentar — ou seja, a base de qualquer soberania real. A bola da tática está quicando para a esquerda chutar no gol!
E, por falar em “gol” por fazer, “O Brasil é dos brasileiros” é o típico limão que, com criatividade, pode render à esquerda — que reivindica o legado histórico do nacionalismo revolucionário — uma bela caipirinha!
Disputar hoje o país de amanhã
Um dos principais autores a definir o conceito de nação no Ocidente foi o francês Ernest Renan, que sugeriu que uma nação é um “plebiscito de todos os dias”, ou seja, não se trata apenas de território ou língua, mas, mas a nação é definida por um povo aspirar um destino comum e escolhe construir. Trago essa menção, pois, hoje, as forças democráticas e populares constroem a Campanha do Plebiscito Popular 2025 para dialogar com o povo sobre redução da jornada de trabalho sem redução salarial, pelo fim da escala 6×1 e sobre a justiça tributária no Imposto de Renda. Mais do que uma consulta nacional sobre trabalho, justiça e dignidade, o plebiscito é uma metodologia de trabalho popular com intuito de mobilização e organização de força social para disputa ideológica
Como se dá a disputa ideológica num país cindido, polarizado, fragmentado por décadas de desigualdade? Como se constrói uma aspiração nacional de futuro? Como construir um destino comum para superar “A Crise Brasileira”? Como transformar as iniciativas do governo Lula hoje – dispersas e desarticuladas- em elementos constitutivos de um projeto de país, políticas de Estado que garantam soberania, democracia e justiça social?
A resposta a essas indagações passam todas elas por mobilização popular e articulação política capaz de criar força social. Atuar na contradição do desenvolvimento sustentável e soberano, é jogar o jogo no campo da luta de classes, onde é favorável tornar a soberania disputa de um destino comum ao povo brasileiro, ao lançar luz na capacidade de um Estado de governar a si mesmo, tomar decisões independentes e justas, com protagonismo do povo, que se sabe povo, afim de desenvolver o seu potencial.
O desafio da luta ideológica tem sido traduzir as pautas estruturais em propostas compreensíveis e viáveis, capazes de dialogar com os anseios do povo brasileiro. O Brasil Soberano é a bola da vez! Trocando em miúdos, se o Império entrega limões, que a esquerda prepare uma boa caipirinha — com sabor de Brasil, com gosto de futuro.
*Olívia Carolino Pires faz parte da Coordenação Nacional do Movimento Brasil Popular