Parlamentares, entidades culturais e sindicatos protocolaram, nesta quinta-feira (14), uma representação no Ministério Público Federal (MPF) no Rio Grande do Sul para contestar o edital de concessão da Usina do Gasômetro à iniciativa privada.
O documento, entregue ao procurador-chefe Felipe da Silva Müller, na sede do Ministério Público, questiona a legalidade da Concorrência Pública nº 020/2025, que prevê a gestão do espaço por 30 anos. Os signatários pedem que o MPF suspenda o processo até que seja analisada a compatibilidade da medida com o convênio federal que rege o uso do imóvel, de titularidade da União e cedido ao município para fins de interesse público desde 1981.
A entrega do documento contou com a presença do ex-prefeito José Fortunati, do vereador Aldacir Oliboni (PT) e de integrantes do Movimento Gasômetro do Povo, que reúne representantes de diversos setores culturais da Capital, como da arte circense, música, dança e artesanato.

O edital lançado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 23 de julho estabelece uma Parceria Público-Privada (PPP) com repasses que podem chegar a R$ 95 milhões ao longo do contrato, por um período de 20 anos. Está previsto um aporte inicial de R$ 7,5 milhões e valores anuais de até R$ 4,5 milhões a partir do terceiro ano. O encerramento do certame está marcado para 27 de agosto.
Ao lançar o edital, o prefeito Sebastião Melo (MDB) afirmou que a Usina do Gasômetro é um espaço de todos. “A gestão compartilhada é fundamental para devolvermos o protagonismo deste cartão-postal tão querido da nossa cidade. As parcerias são um braço fundamental do governo e entendemos que os serviços podem ser geridos tanto pelo público quanto pelo privado desde que prestados com qualidade. Esse é mais um passo importante para resgatarmos o patrimônio histórico de Porto Alegre, fortalecermos o turismo e valorizarmos a cultura.”
De acordo com o Executivo municipal, enquanto tramita o processo da concessão definitiva, um edital de transição temporário, por meio da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), levará atividades culturais para diversos espaços do prédio.
Investimentos públicos e questionamentos financeiros
A Usina passou por obras recentes de reforma, custeadas com cerca de R$ 26 milhões em recursos públicos. Para os críticos, esse investimento, somado aos valores previstos no contrato, justificaria a continuidade da gestão pública do espaço.
Fechada para revitalização em 2017, a Usina foi aberta parcialmente este ano para abrigar a Bienal do Mercosul, e em julho, para as assembleias do Orçamento Participativo. O ex-prefeito José Fortunati pontuou que o fechamento temporário para reforma era necessário, pois os problemas estruturais se agravavam. A surpresa veio quando, após as obras, a prefeitura comunicou a intenção de conceder a gestão do espaço à iniciativa privada. “Ninguém vai administrar uma usina do ponto de vista privado se não for para obter lucro. Tenho sérias dúvidas de que, do jeito que está sendo feito, a Usina continuará sendo um espaço da cultura. E falo isso como alguém que não é contra concessões”, afirmou.
Fortunati também comparou a situação ao modelo de concessão do auditório Araújo Vianna, apontando diferenças fundamentais, enquanto que no caso do auditório 25% do tempo de uso seria reservado ao poder público, o que, segundo ele, atendeu plenamente às necessidades culturais da cidade, já em relação à Usina o destino é incerto. “A reforma foi integralmente custeada com dinheiro público. E agora, segundo o edital, isso será entregue a uma empresa privada, onde ela será remunerada e nós não temos nenhuma garantia de que os grupos culturais poderão continuar usufruindo daquele espaço como usufruíram anteriormente. Isso seria um golpe muito forte contra a cultura de Porto Alegre.”
Representando a Associação de Circo do RS, Consuelo Vallandro pontuou que a equação financeira não se sustenta. “A prefeitura vai bancar mais de 80% do custo mensal e receber em contrapartida 100 dias, menos de 30% das datas do ano. Pagou pela reforma, vai pagar o custo mensal e ainda assim abre mão da maior parte do calendário. Não faz nenhum sentido.”
Complementando, o vereador Aldacir Oliboni (PT), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Cultura, reforçou que a Usina ficou fechada por cerca de sete anos e foram gastos mais de R$ 25 milhões na reforma, dinheiro público. “É como se eu preparasse uma estrada com recursos públicos e depois entregasse o pedágio para um operador privado”, comparou. Para ele, a prefeitura está tratando o espaço como se fosse um empreendimento comercial.

Vocação cultural e risco de restrição de acesso
No início de agosto deste ano representantes do Movimento Gasômetro do Povo se reuniram com a Superintendência do Patrimônio da União no RS (SPU/RS) e pediram a revogação imediata da concessão da Usina do Gasômetro para o município de Porto Alegre que, em 1982, passou a administração do prédio para a Prefeitura da Capital. O grupo ouviu do superintendente do patrimônio da União, Emerson Rodrigues, que a Usina do Gasômetro permanece como patrimônio do governo federal.
Ao representante do MPF, as entidades afirmam que a concessão descaracteriza a função cultural da Usina, permitindo locações para eventos privados sem acesso livre à população. Há receio de que o espaço se torne um ambiente restritivo. Fortunati destacou a importância do local como incubadora de grupos artísticos. “No final do meu governo havia mais de 30 grupos de teatro e dança atuando dentro da Usina. Ela deve servir exatamente para emular a cultura em Porto Alegre. Essa é sua principal função.”
Ao Brasil de Fato RS o advogado Gustavo Bernardes, do Movimento Gasômetro do Povo, ressaltou que o setor cultural da Capital vive um abandono por parte da prefeitura e enfrenta um processo de privatização dos espaços públicos. “Estamos sem diálogo com a prefeitura. Todos os equipamentos culturais da cidade estão sendo privatizados. E o mais grave é que, mesmo recebendo recursos do governo federal para desenvolver projetos culturais, os grupos não têm onde expor ou mostrar seu trabalho à população”, ressaltou.
Corroborando com o que foi levantado por Bernardes, Consuelo Vallandro frisou que a cidade enfrenta déficit de salas de espetáculo. “Perdemos cinco teatros com a enchente. Alguns voltaram, mas outros seguem fechados, como o Teatro de Arena. O último edital deixou 30 grupos de fora por falta de datas.”
Bernardes relatou que o movimento tentou buscar interlocução institucional, mas sem sucesso. “Tentamos diálogo pelo Conselho Municipal de Cultura, que rejeitou o edital apresentado pela prefeitura. Mesmo assim, o município insiste em levar adiante essa cessão, que vai tornar o espaço inviável para os grupos culturais da cidade.”
O advogado também alertou para o efeito social da medida e contestou o argumento da prefeitura de que o acesso ao espaço continuará livre. “Shopping center também tem acesso livre, mas sabemos que determinados grupos não frequentam esses lugares, como populações periféricas, travestis e transexuais, porque não são espaços que as acolhem. Queremos um espaço público que acolha todos e todas”, reforçou.

Histórico de eventos culturais e experiências de concessão
A presidente da Federação das Entidades de Artesãos do RS, Rejane Beatriz Verrado, recordou que a Usina sediou por 23 edições a Feira Latino-Americana de Artesanato, evento oficial no calendário da cidade, encerrado em 2014. Ela alertou que a população muitas vezes é convencida pelo discurso de que as reformas deixam os espaços “bonitos”, mas, na prática, há perda de identidade e acesso.
“A Usina do Gasômetro é um espaço simbólico, não só para Porto Alegre e o Rio Grande do Sul, mas para o Brasil. Em feiras nacionais de artesanato, sempre nos perguntam quando o setor cultural vai retomar a Usina e a Feira Latino-Americana”, relatou. “Se a Usina ainda pertence à União, é fundamental que o governo federal dialogue e cobre da prefeitura explicações sobre o edital”, concluiu.
Representando o Sindicato dos Músicos, Polaca Rocha citou a concessão do Araújo Vianna como exemplo de promessas não cumpridas. “A prefeitura cedeu 30% das datas e não usou nem quatro. No Gasômetro não haverá equipamento de som, luz ou segurança incluídos. Depois, quem quiser fazer show terá que pagar por tudo.”
Já a representante do Conselho Municipal de Cultura, Patrícia Sacchet relatou que o projeto de concessão da Usina do Gasômetro foi apresentado ao conselho em abril de 2024, durante uma reunião ordinária, onde todos os membros se posicionaram contrários à proposta de parceria público-privada. “Naquele momento, nossa opinião não foi considerada. De repente, surgiu o edital, sem que o conselho tivesse sido escutado. Não dá para dizer que somos contrários depois, sem levar em conta a função consultiva do conselho”, afirmou. Ela destacou a importância do envolvimento político e institucional para garantir que a voz dos artistas e segmentos culturais seja ouvida na tomada de decisões sobre espaços públicos da cidade.
Debate jurídico: titularidade e convênio federal
Outro ponto central é que, segundo a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), o imóvel continua sendo da União, o que impossibilitaria a concessão sem autorização federal. Oliboni questiona: “Como se abre um edital para concessão de um patrimônio que não é do município? A SPU nos disse que a Usina ainda pertence ao governo federal”.
Bernardes reforça que a União e os movimentos culturais não foram consultados. “O Ministério Público Federal precisa investigar esse edital, que na nossa opinião é ilegal, e fiscalizar a atuação da prefeitura, pois trata-se de um patrimônio da União e do povo de Porto Alegre.”
Demandas ao MPF
A representação, assinada por quatro ex-prefeitos (Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e José Fortunati), pelos vereadores Aldacir Oliboni e Jonas Reis, pelo deputado estadual Leonel Radde (PT), pela deputada federal Maria do Rosário (PT) e pelo Movimento Gasômetro do Povo, solicita:
- Instauração de procedimento administrativo ou inquérito civil para apurar a legalidade da concessão;
- Notificação da SPU/RS e da Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional S.A. (ENBPar) para manifestação formal;
- Expedição de recomendação para suspensão imediata do edital até deliberação da União;
- Adoção de medidas judiciais ou extrajudiciais para proteção do patrimônio público federal e da moralidade administrativa.
Histórico de preservação
A Usina do Gasômetro já foi alvo de mobilização popular na década de 1970, quando sua demolição foi proposta para a construção de uma perimetral. A pressão de artistas e da sociedade garantiu sua preservação e transformação em centro cultural. “Foi a população de Porto Alegre que se mobilizou para que a Usina continuasse e se tornasse um espaço de cultura”, lembrou Bernardes.
Na próxima quinta-feira (21) está agendada uma reunião da Frente Parlamentar em Defesa da Cultura, mobilizada pelo Movimento Gasômetro do Povo em parceria com os conselhos municipal e estadual de Cultura.