A Polícia Federal concluiu a investigação sobre a atuação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em uma nova tentativa de obstruir a Justiça e coagir ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ambos foram indiciados pelos crimes de coação no curso do processo e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito.
A apuração, que teve como base a análise de mensagens apagadas e depois recuperadas pela PF, revela uma série de estratégias articuladas para influenciar o julgamento da tentativa de golpe de Estado. O pastor Silas Malafaia também é citado na investigação como peça-chave nessa articulação, embora não tenha sido indiciado. Ele foi alvo de busca e apreensão nesta quarta-feira (20), teve o celular apreendido e está proibido de deixar o país ou se comunicar com outros envolvidos.
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no STF, lista episódios que envolvem o descumprimento de medidas cautelares, a tentativa de articulação internacional com advogados ligados ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, momentos de troca de acusações e xingamentos e até a existência de uma carta com pedido de asilo político endereçada ao presidente argentino Javier Milei.
A seguir, o Brasil de Fato detalha os principais trechos e elementos da decisão que escancara o bastidor da estratégia de pressão sobre o Judiciário brasileiro.
Malafaia como operador político: a articulação com Bolsonaro para desrespeitar decisões do STF
De acordo com a PF, Silas Malafaia desempenhou papel central na mobilização digital que visava atacar ministros do Supremo. Nas conversas extraídas do celular de Bolsonaro, o pastor aparece incentivando diretamente o ex-presidente a publicar vídeos e mensagens com críticas ao STF – tudo isso mesmo após decisões judiciais que proibiam Bolsonaro de usar redes sociais.
As mensagens mostram Malafaia enviando conteúdos com orientações explícitas de horário para publicação e frases de impacto. Em uma das mensagens, pede que o ex-presidente encaminhe um vídeo com a frase: “Se você se sente participante desse vídeo, compartilhe. Não podemos nos calar!”
Na madrugada desta quinta-feira (21), o pastor publicou um vídeo em suas redes sociais em que ataca o ministro Alexandre de Moraes e o acusa de perseguição religiosa. Malafaia reclamou de ter o celular, três cadernos “com mensagens bíblicas” e o passaporte apreendidos.
“Se eu falar do inquérito, sou preso. Mas a Gestapo de Alexandre Moraes vaza tudo”, disse o religioso.
Vídeos, listas e mobilização: como Bolsonaro manteve atividade política nas redes
Apesar de estar proibido judicialmente de utilizar redes sociais, Bolsonaro criou listas de transmissão no WhatsApp com nomes como “Deputados”, “Senadores”, “Outros” e “Outros 2”. Por meio dessas listas, compartilhou vídeos e mensagens com conteúdo político, mobilizando apoiadores e parlamentares para manifestações de apoio.
No dia 3 de agosto, por exemplo, Bolsonaro compartilhou ao menos 363 mensagens sobre um ato realizado em Salvador (BA), em apoio a ele. Segundo a PF, a ação foi articulada para burlar as restrições impostas pelo STF.
Contas das esposas e a estratégia para escapar das restrições judiciais
Para escapar das restrições impostas por Moraes, Bolsonaro também utilizou pessoas próximas para intermediar publicações e mensagens. Uma das ações mapeadas foi o envio de vídeos e mensagens a contatos como “Negona do Bolsonaro”, perfil que rapidamente publicou o conteúdo nas redes.
A PF também aponta movimentações a partir de celulares e contas vinculadas a esposas e familiares de investigados – o que, segundo os investigadores, reforça o uso de terceiros para manter a estratégia de comunicação e mobilização política ativa.
Risco de fuga: PF encontra carta com pedido de asilo a Milei
Um dos documentos mais graves revelados pela investigação foi uma carta, redigida e salva no celular de Bolsonaro, endereçada ao presidente da Argentina, Javier Milei. O texto de 33 páginas contém um pedido de asilo político, alegando perseguição no Brasil.
A carta foi salva no celular do ex-presidente dois dias depois da deflagração da Operação Tempus Veritatis, em fevereiro deste ano. Para a PF, o documento confirma o “comprovado risco de fuga” e demonstra que Bolsonaro buscava alternativas para escapar das consequências judiciais dos processos em curso.

Papo proibido com Braga Netto
Além do plano para deixar o país, Bolsonaro também violou a proibição de contato com outros investigados. Em 9 de fevereiro, dois dias após a deflagração da Operação Tempus Veritatis, ele recebeu uma mensagem por SMS enviada por Walter Braga Netto, seu ex-ministro e corréu na ação penal que apura a tentativa de golpe.
A mensagem, enviada de um número pré-pago, dizia: “Estou com este número pré-pago para qualquer emergência. Não tem zap. Somente face time. Abs Braga Netto”. Para a PF, o uso de canal alternativo confirma o descumprimento deliberado das medidas cautelares impostas pelo STF.
Lobby internacional com advogado de Trump para atacar Moraes
A investigação revelou ainda diálogos entre Bolsonaro e Martin De Luca, advogado estadunidense ligado à Trump Media e à plataforma Rumble. De Luca é autor de uma ação judicial contra Alexandre de Moraes nos Estados Unidos, e forneceu documentos diretamente a Bolsonaro antes mesmo de formalizar o protocolo nos tribunais do país norte-americano.
A PF considera essa articulação uma tentativa deliberada de constranger o Judiciário brasileiro por meio de instâncias internacionais, evidenciando, segundo os investigadores, um “desvio quanto à real finalidade das pretensões deduzidas pela empresa”.
No celular de Bolsonaro, havia registro direto de número vinculado ao advogado, com DDD de Nova York. A PF aponta que Martin De Luca chegou a enviar, antes do protocolo formal na Justiça dos EUA, a íntegra da petição judicial contra o ministro Moraes.
Em áudios enviados pelo ex-presidente, Bolsonaro pede ajuda para redigir uma nota pública em que elogiaria Donald Trump e falaria em “perseguição política”. O diálogo teria o objetivo de alinhar a narrativa pública entre os dois lados.
Contas das esposas para esconder dinheiro
A Polícia Federal identificou indícios de que Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro utilizaram as contas bancárias de suas esposas – Michelle e Heloísa Bolsonaro, respectivamente – como forma de movimentar ou esconder recursos.
Segundo o relatório, o objetivo seria evitar bloqueios judiciais ou rastreamento de valores. O uso dessas contas aparece no contexto da tentativa de contornar sanções impostas por decisões judiciais.
Eduardo Bolsonaro e o papel de difusão de ataques ao Supremo
Eduardo Bolsonaro também aparece na investigação como parte ativa da estratégia de pressão e difamação ao STF. Segundo a PF, o deputado, que está no exterior, publicou mensagens com ataques ao ministro Alexandre de Moraes e críticas ao andamento das investigações.
A partir de março, postagens feitas por Eduardo passaram a ser replicadas por Martin De Luca em suas redes sociais, o que indica, segundo o relatório, uma coordenação entre os envolvidos para reforçar a narrativa de perseguição e deslegitimar as instituições brasileiras.
Em mensagens enviadas ao pai, Eduardo afirmou que “a Magnitsky no Moraes estava muito, muito próxima”. Pouco depois, os Estados Unidos impuseram sanções ao ministro.
O deputado ainda recomendou ao pai que elogiasse Trump publicamente por uma taxação de 50% sobre produtos brasileiros, sugerindo que isso ajudaria na articulação. “Você não vai ter tempo de reverter se o cara daqui virar as costas para você”, escreveu.
Anistia só para um: mensagens revelam articulação por “perdão” exclusivo a Bolsonaro
Outro ponto revelado pelas mensagens é uma articulação em defesa de uma proposta de anistia parcial, que beneficiaria apenas Bolsonaro, deixando de fora os demais réus da tentativa de golpe.
No conteúdo compartilhado entre o ex-presidente e aliados, a proposta de “anistia só para Bolsonaro” é apresentada como solução para pacificar o país. A PF vê nessa tentativa mais um indício de desvio institucional, na medida em que busca interferir no processo judicial e construir uma saída política apenas para o ex-mandatário.
Para a Polícia Federal, as mensagens mostram que a proposta de anistia não tinha como foco os presos pelos atos golpistas de 8 de janeiro, mas a construção de uma saída individual para Jair Bolsonaro.
Eduardo chama a proposta de “anistia light” e afirma que, caso não fosse aprovada, “você não teria mais amparo dos EUA”, em referência ao pai.
Ofensas e xingamentos: mensagens revelam clima de desespero no entorno bolsonarista
Além das articulações formais, o conteúdo das conversas também inclui xingamentos, acusações e ataques pessoais.
As mensagens reunidas no relatório da Polícia Federal revelam fissuras e ataques diretos dentro do próprio clã Bolsonaro. Em um dos trechos mais explosivos, Eduardo Bolsonaro insulta o pai após se sentir traído por declarações do ex-presidente durante uma entrevista ao site Poder360.
“Ia deixar de lado a história do Tarcísio, mas graças aos elogios que você fez a mim no Poder360, estou pensando seriamente em dar mais uma porrada nele, pra ver se você aprende”, escreveu Eduardo.
A mensagem prossegue com xingamentos: “VTNC SEU INGRATO DO CARALHO!”, diz o deputado ao pai, antes de reproduzir frases ditas por Jair Bolsonaro, que se referia ao filho como “imaturo”.
“Se o IMATURO do seu filho de 40 anos não puder encontrar com os caras aqui, PORQUE VC ME JOGA PRA BAIXO, quem vai se fuder é vc E VAI DECRETAR O RESTO DA MINHA VIDA NESTA PORRA AQUI!”, diz Eduardo na conversa recuperada pela PF.

A tensão também aparece nas mensagens de Silas Malafaia, que chama Eduardo de “babaca”, “inexperiente” e “estúpido”. No dia 11 de julho, às 18h55, Malafaia escreveu: “DESCULPA PRESIDENTE! Esse seu filho Eduardo é um babaca, inexperiente, que está dando à Lula e à esquerda o discurso nacionalista, e ao mesmo tempo te ferrando. Um estúpido de marca maior. ESTOU INDIGNADO!”
O pastor diz ainda que só não atacou publicamente o deputado por consideração ao pai. Em outro momento, Malafaia relata ter dado “um esporro” em Eduardo após ele “falar merda”.
Eduardo Bolsonaro se manifestou após o indiciamento e disse que as mensagens representam “conversas normais entre pai, filho e seus aliados”. Ao religioso, disse: “pastor Silas Malafaia, tamo junto [sic]. O senhor está sofrendo os últimos atos desse regime.”