O uso da palavra golpe remete a ideia de impacto, de investida ou arremetida contra algo ou alguém. De uma ação que se desencadeia velozmente. Um ato, enfim, que confere o sentido de um movimento contundente singular, único. A ideia de golpe de Estado, por sua vez, toma emprestado este significado. E a forma, quase sempre, dominante de se relatar esse fato, reproduz e consolida este sentido de irrupção inesperada. Ainda que haja, em grande parte dos golpes de Estado ou em suas tentativas, episódios com estas características, e que estes episódios sejam muito relevantes para a consecução da tentativa golpista, a realidade é que não há um “golpe”, uma arremetida assim como visto ou imaginado em uma luta, sem que haja um processo golpista que lhe ambiente.
Em um trabalho fundante para as ciências sociais brasileiras e decisivo para a compreensão da história política do Brasil, René Dreifus* demonstra como o golpe de Estado de 1964 foi longamente cevado por um processo de articulação de intelectuais orgânicos das classes dominantes, organizações de direita e empresariais, oficiais das forças armadas e a política externa de um governo estrangeiro. Essas forças se articularam intelectualmente, politicamente e, inclusive, economicamente para atingir as condições necessárias para o desfecho do ato golpista.
Buscando outro viés explicativo, Carlos Fico** igualmente nos oferece elementos para concluir que os golpes de Estado, tantos os bem-sucedidos quanto os malsucedidos, são resultados de diferentes interesses e do resultado das confrontações de forças sociais e políticas. Demonstra Fico como em instituições fechadas, como as Forças Armadas, especialmente elas, são forjados e desenvolvidos valores ideológicos que estão na base dos processos golpistas no país. O desprezo pela política e o sentimento de superioridade ética embalam muito dos atos discursivos que alimentam as condições sociais, em especial incidindo na opinião pública, favoráveis aos desfechos golpistas e insurrecionais.
Golpes de Estado são um projeto, não somente uma iniciativa. São resultado de experimentações e organização de ideias e de plataformas políticas, além da decisão de setores contrariados a reverter a ordem política. Mas é preciso haver um contexto de crise econômica que possa ser escalado para uma crise de valores, a fim de se criarem as condições suficientes para algum ousado sujeito político tomar a iniciativa da ruptura e ser seguido e sustentado pelos demais. Foi assim em 1964.
A despeito da contumaz desídia política e intelectual que caracteriza um largo espectro de forças democráticas, de liberais progressistas a comunistas, passando por social-democratas e centristas, a tentativa golpista bolsonarista irrompeu em janeiro de 2023. Os sinais nítidos e contundentes de que a hegemonia democrática liberal de 1985 para cá estava em questionamento já eram perceptíveis. Esta desídia, ou dificuldade de interpretação, levou setores a ilusão de que junho de 2013 significava uma erupção revolucionária. Noutro sentido, diametralmente antagônico, levou à ideia de que estas manifestações não passavam de críticas pontuais por medidas concretas de governo.
Nenhum deles se mostrou acertada. A interpretação predominante nos debates públicos – a exceção foram alguns círculos acadêmicos com audiência obstruída em um mundo de redes digitais- acerca do significado daqueles eventos não foi capaz de identificar o fenômeno central daquele período: a emergência da extrema direita e com ela de um processo de ruptura da ordem democrática.
De crítica em crítica, de bandeira em bandeira, de postagem em postagem, cada vez mais destemperadas e exóticas em relação aos padrões liberais hegemônicos no Brasil, a extrema direita despertou o reacionarismo mais profundo da sociedade, envolta em uma barragem de fogo comunicacional que lhe convenceu que o mundo estava em destruição. Valores e termos como xenofobia, racismo, islamofobia, antissemitismo, supremacismo branco, fascismo, nazismo, neofascismo, neonazismo, eliminação, purificação e substituição étnica, rejeição aos imigrantes, nacionalismo, legislações segregacionistas, regressão democrática, ditadura, tortura, intervenção militar, negação da ciência e da modernidade, eliminação dos adversários, anticomunismo, demônio, anticristo, pecado, “gaysismo” (sic), família tradicional, guerra ao politicamente correto, guerra cultural, – entre outros novos e velhos dogmas e falsificações – ressurgiram na agenda com uma força que não desacelerou até os dias de hoje.
A Ação Penal 2668, que julga a tentativa golpista de 2022/2023, é um fato singular na história brasileira – nenhuma outra tentativa golpista ou mesmo golpe de Estado efetivado foi submetido ao escrutínio de um julgamento na forma do Estado democrático de direito. Lembremos que o Estado Novo foi destituído por um golpe militar em 1945, a Ditadura de 1964 acabou em um processo transacionado firmado pela Lei de Anistia de 1979 e pelo Colégio Eleitoral de 1984 e as impressionantemente inúmeras tentativas golpistas desde a Revolução de 1930 não tenham sido julgadas e apuradas. Por essas e por outras, a força golpista não foi totalmente interditada.
A extrema direita brasileira, em especial a sua fração dirigente – o Bolsonarismo – manteve, de um modo ou outro a ofensiva política. Primeiro mobilizando recursos financeiros, apoios empresariais, bancadas parlamentares para questionar o resultado das eleições e revertê-la, depois articulando-se com o governo estrangeiro de Donald Trump, igualmente de extrema direita e avesso ao rigor da democracia, para obstruir a condenação do núcleo político da tentativa golpista de 22/23.
Este episódio, que envolve a guerra tarifária, a retaliação às instituições soberanas e a tensão militar efetivada por Trump contra o governo Lula e o STF, é a continuidade do processo golpista aberto há anos do Brasil. Porém a gravidade política da situação é que este movimento político, que envolve Trump, não é meramente reativo ao insucesso da intentona de janeiro de 23. Principalmente, é a preparação política para nova tentativa de golpe a partir do resultado das eleições do ano que vem (2026).
A batalha em defesa da democracia não foi vencida, portanto. Passa por enfrentar a guerra de baixa intensidade que Trump promove contra o Brasil, garantir que o STF cumpra seu dever constitucional, tanto na defesa da soberania nacional quanto no julgamento dos golpistas, e que a extrema direita tenha seu caminho em direção a retomada do governo federal interditado. Não há evidência, de qualquer tipo, que permita concluir que se vive uma “normalidade” política no Brasil, no Sul global e no mundo. A ilusão de que o fim da guerra fria significaria a consolidação da democracia liberal levou ao desarmamento do progressismo e da esquerda em todo o mundo. Um custo muito alto para os direitos humanos e para os trabalhadores.
*Dreifus, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
**Fico, Carlos. Utopia autoritária brasileira: como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2025.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.