A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) vai adotar medidas de defesa e proteção à história do trecho catarinense do Caminho do Peabiru, rota indígena milenar.
Segundo a jornalista e escritora Rosana Bond, especialista no tema, tal trecho foi “sequestrado por um grupo de políticos e empresários bolsonaristas de Joinville e Garuva causando desinformação, deturpação e polêmica por não possuir conteúdo verídico e provado”.
Bond pesquisa o caminho há quase 30 anos e já escreveu cinco livros a respeito, sendo a publicação mais recente A Saga de Aleixo Garcia – O descobridor do Império Inca em uma edição revista, ampliada e com anexos inéditos.

Autora de mais de 20 livros sobre conflitos na América Latina e a saga dos povos ameríndios, a paranaense é radicada há muitos anos em Florianópolis. Após passar por diversas redações, Bond trocou o jornalismo pelos livros nos anos 1990, tornando-se pesquisadora nas áreas de história e geografia. Também se voltou ao público infanto-juvenil, publicando A magia da árvore luminosa, Crescer é uma aventura e O senhor da água.
Entre seus livros mais conhecidos estão Nicarágua: a bala na agulha (1985), Sendero luminoso: fogo nos Andes (1991), A civilização inca (1993), O caminho de Peabiru (1996), A saga de Aleixo Garcia, o descobridor do império inca (1998), Peru: do império inca ao império da cocaína (2004).
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ela conta que a universidade irá criar um Grupo de Estudos que será dirigido pela professora-doutora Adriana Kaingang, do Laboratório de História Indígena (Labhin).
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS: O que é o Caminho do Peabiru e que “sequestro” é este que a UFSC pretende barrar?
Rosana Bond: Pois então, é uma notícia quentinha que damos em primeira mão ao Brasil de Fato. Agora em setembro a UFSC começa a agir contra a usurpação e distorção da história verdadeira do Peabiru, por meio do funcionamento de um Grupo de Estudos que será dirigido pela professora-doutora Adriana Kaingang, do Laboratório de História Indígena (Labhin).
Será uma equipe constituída por representantes das áreas de história, antropologia/etnologia, arqueologia (Museu de Arqueologia e Etnologia, MArquE), geografia, e talvez outros a serem convidados, tais como lideranças ou professores indígenas. Deve ser também chamada a jornalista Elaine Tavares (do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), vinculado à própria universidade). Estarei ali também, como convidada.
E o Caminho do Peabiru o que é?
É um dos episódios indígenas mais fascinantes das Américas. Um caminho de cerca de 4 mil km, que ligava o oceano Atlântico ao Pacífico, desde o litoral do Brasil (SP, PR, SC) ao Chile (ex-Peru até a guerra de 1883), atravessando os Andes.
Uma trilha sagrada para os guaranis, que traria seu povo ao paraíso da Terra Sem Male cá no nascer do Sol, embora não tenham sido eles os construtores e sim nações originárias mais antigas, com datação provável de até 8 mil anos.
E sobre o “sequestro”?
É uma história lamentável, desagradável e longa, com lances desde 2021. O trecho catarinense foi “sequestrado” por um grupo de políticos e empresários bolsonaristas de Joinville e Garuva cometendo divulgações errôneas, visando interesses financeiros e eleitorais, através do turismo, que causaram desinformação, deturpação e polêmica por não possuir conteúdo verídico e provado. O grande prejuízo é o desprezo pela memória cultural indígena, e pelos desvios na história de SC ensinada nas escolas a nossos jovens alunos.
Estas pessoas estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal em um inquérito civil, Portaria n. 49, por propaganda enganosa.
E onde entra a ação do Grupo de Estudos?
O Grupo da UFSC justamente começará tratando de um lance mais recente, de 2024-2025, vendo que encaminhamento poderá ser dado a uma denúncia de possível fraude acadêmica de cinco professores de uma universidade de Lages (SC).
Estes docentes estão relacionados a uma ex-colega professora, também dona de agência de turismo em Garuva e candidata bolsonarista a vereadora garuvense em 2024.
Uma suspeita de fraude?
Sim, há esta suspeita a ser analisada. O grupo de Lages escreveu um artigo publicado em uma revista com perfil de Publicação Predatória (PP) que o Caminho do Peabiru foi construído pelos incas, desde o Peru até o litoral de SC, PR e SP. Uma mentira deslavada, sobre a qual não colocaram fonte bibliográfica ou outra qualquer. Repetindo o que falei ao jornal A Nova Democracia (AND) há alguns dias: se esta afirmativa fosse verdade seria uma notícia bombástica, digna das melhores universidades e revistas científicas do mundo.
No artigo questionado como possível fraude os professores de Lages também incluíram um percurso peabiruano inventado por Garuva, via Escadaria de Pedras do Monte Crista, que teria sido realizada com presença ou influência inca. Seria um fantástico e excelente chamariz turístico para a agência da ex-professora, um pedacinho de Machu Picchu em pleno litoral catarinense. Muito triste uma coisa dessa ser praticada dentro do âmbito universitário. Mas o pior é que o problema acadêmico peabiruano e “inca” não para por aí…
Como assim?
É que houve outro caso. Conforme noticiou o AND em março deste ano, um estudante universitário de Joinville, da pós-graduação da Univille, apresentou nas redes sociais o texto “Resumo Campos do Quiriri e o caminho do Peabiru: Patrimônio, Turismo e Arqueologia” em que estabelece vínculo do Quiriri joinvilense com o império inca. A publicação desgostou suas duas professoras-orientadoras, pois “ficou bem diferente do que nós duas havíamos revisado antes”, disse uma delas. O viés peruano “inca” dado pelo aluno não satisfez as orientadoras, que ficaram decepcionadas.
Eu fui ouvida pelo AND e afirmei o seguinte: “Esta decepção é plenamente compreensível. Estas professoras são profissionais respeitadas e respeitáveis que, como conhecedoras da história e arqueologia da América do Sul, sabem que seria descabido aceitar presença ou influência inca em SC. Isto já foi descartado de modo definitivo por laudos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).”
E qual será o papel da UFSC nestas questões?
A nossa chefa, a Adriana, numa pré-reunião semanas atrás comentou: “Confio que vamos conseguir formatar um projeto sólido, fundamentado, útil e bem bonito para entregar à vice-reitoria”. Adriana Kaingang é a primeira professora indígena a integrar o quadro efetivo da UFSC e a primeira mulher de seu território (T.I. Xapecó) a obter o título de Doutorado.
Um projeto de trabalho para a proteção científica do Caminho do Peabiru pela UFSC foi encomendado ao Grupo de Estudos presidido por Adriana pela vice-reitora Joana Célia dos Passos, mestra e doutora em educação. Eu considero que será como um antídoto aos malefícios bolsonaristas.