Para falar de cultura gauchesca/gauchismo, é necessário falar (mesmo que brevemente) dos “gaúchos/gauchos”, grupo social específico, com cultura própria, surgido no Pampa, bioma específico do sul da América do Sul. Oportuno frisar que nossa abordagem não é resultante de imaginação idealizada, mas sim calcada na bibliografia registrada ao final deste artigo, contando com autores reconhecidos, que, por sua vez, se basearam, entre outras fontes, em documentos primários e relatos de pesquisadores e viajantes.
Um dos primeiros registros da palavra “gaúcho” em documentos dos colonizadores data de 1771, porém, é certo que há uma precedência do uso oral da palavra. Identifica homens, a maioria mestiços de indígenas, espanhóis, portugueses e negros, vinculados a um ambiente/paisagem peculiar (o/a Pampa) e a lida, a cavalo, com o gado (introduzido no século XVII por espanhóis via Uruguai e Missões Guaranis-jesuíticas). Eram andarilhos que caçavam o gado, para vender a gordura e o couro ou trocar por produtos necessários para sobreviver. Vestiam camisas de algodão, chiripás (mais tarde bombachas), ponchos, vinchas, botas garrão de potro; portavam facas, adagas, lanças, laços, boleadeiras; comiam carne assada, tomavam mate; tinham por companheira ou amazias mulheres indígenas, negras e mestiças, por vezes brancas. Peleavam entre si e nas guerras de fronteira. Gaudérios, sem paradeiro, hábeis cavaleiros, vagavam pelos campos fora do alcance das autoridades, sentindo-se autônomos na imensidão do Pampa. Quando a Coroa espanhola regularizou a exploração do couro, foram considerados fora da lei e mais fora da lei ficaram quando, a partir de 1875, os campos começam a ser cercados. Marginalizados, o “oficial colonial e o viajante europeu” (Leal, 2021) em seus registros (euro)etnocêntricos tratou o gaúcho como bandido, marginal, rústico, vadio, selvagem. Alias, adjetivos também utilizados para indígenas e negros.
Os campos passaram a ser propriedade de poucos latifundiários, “afastando da posse da terra a multidão de gaúchos” (Golin, 1999) e indígenas, restando-lhes vagar nos campos, ser soldado nas guerras (dos séculos XVII ao XX), peão nas estâncias ou changueiro.
Nas estâncias, a sede era composta pela casa principal (patrão latifundiário, chefe político e militar); casa do capataz; galpão dos peões solteiros; senzala para negros/as escravizados; e, mais afastados, ranchos dos peões com família. Campereadas, rodeios, domas, cavalgadas, destreza no laço e na carneação; galpão, fogo de chão, roda de chimarrão, causos, trovas, lendas, proezas, falas em portunhol, mescladas com o guarani; churrasco, mocotó, puchero, pirão, quibebe, charque, batata, mandioca, abóbora; campeiros, ginetes, posteiros, alambradores, guasqueiros, tropeiros; bolichos/pulperias, ramadas, carreiras de cancha reta, jogo do osso, carteadas, fandangos, sapateados, xote, chimarrita, balaio, milongas, chamamés, pajadores, trovadores, violão, gaita e pandeiro.
Nos parágrafos acima (telegrafados para “encurtar o causo”) vários elementos dessa cultura e identidade gauchesca, com origens indígena, europeia e negra. Uma cultura, surgida no Pampa, espaço geográfico (ocupando terras no RS, Uruguai e Argentina), mas também simbólico, cuja expressão cultural extrapolou limites físicos, estendendo-se até o Chile, Paraguai e Planalto Meridional brasileiro, superpondo e integrado geograficamente, historicamente e culturalmente as Regiões Platina (Bacia do Prata) e Missioneira.
Tradição não é tradicionalismo
A afirmativa deste subtítulo parece óbvia, porém tradição e tradicionalismo seguidamente são utilizados de forma confusa, como sinônimo ou uma substituindo a outra. Na definição de “culturas tradicionais” adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 1989), tradição está associada a um conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural, manifestadas por um grupo ou por indivíduos, enquanto expressão de sua identidade cultural e social. Um conjunto de saberes, fazeres, como a língua; arquitetura; artesanato, música, dança e outras artes; culinária; mitos, ritos e religiosidades; costumes, normas e valores. Criações transmitidas (oralmente, por imitação e de outras maneiras) de uma geração à outra dentro da comunidade ou grupo social. Assim, povos originários, quilombolas, ribeirinhos, ciganos, vaqueiros nordestinos e gaúchos, enquanto comunidades ou grupos sociais específicos, são detentoras de tradição ou de culturas tradicionais.
Já tradicionalismo (RS) é um movimento cultural, com antecedentes no “Partenon Literário” (1868), conformado em meados do século XX, a partir de manifestações/ações de jovens estudantes interioranos (C. E. Júlio de Castilhos – “Julinho”) contestando a ideia de que “o modo de vida gaúcho” era atrasado ou coisa de “grosso”. Estas manifestações ocorreram num contexto marcado pela construção forçada (ditadura do Estado Novo) de uma “identidade nacional”, onde expressões e elementos regionais foram reprimidos, bem como, pela imposição dos Estados Unidos do “modo de vida norte americano”, associado ao progresso, que opunha o moderno ao tradicional, urbano ao rural. Matear em público nas cidades era ridicularizado, discriminado.
Os estudantes fundaram no “Julinho” um “Departamento de Tradições Gaúchas”. A ideia ultrapassou os limites do colégio, passando a interessar pessoas vinculadas a maçonaria e a Brigada Militar. Foram realizadas campanhas para criação de um “clube tradicionalista”, resultando na fundação, em 1948, do “35 CTG” (Centro de Tradições Gaúchas). No entanto, segundo o historiador Zalla (2016), surgiu uma divergência entre esses fundadores. Os estudantes pretendiam um clube aberto, para reunir pessoas, em torno da cultura e folclore gaúcho, focado na figura do peão de estância. Por sua vez, o grupo influenciado pelos militares queriam uma sociedade fechada que celebrasse os feitos militares gaúchos, focado na “Revolução Farroupilha”. Resultou num “acordo”: O clube seria aberto, mas reunindo as duas concepções: a cívica de exaltação dos feitos militares da Farroupilha e a concepção paisana de exaltação aos costumes do campeiro, o gaúcho. Assim começa a surgir “o movimento tradicionalista”. Por cerca de 10 anos o 35 CTG teve como sede uma sala na Federação da Agricultura do Estado do RS (FARSUL), materializando intimidade com a elite latifundiária do Estado.
Esse movimento “cívico-cultural” constituído de elementos da cultura gauchesca, se alastrou pelo Estado com a criações de inúmeros CTGs. Após encontros, congressos, criação de uma federação de CTGs, foi constituída em 1966 a instituição MTG. Assim, misturando elementos da tradição gauchesca, com “tradições regradas”; referenciado numa versão idealizada da Revolução Farroupilha; se auto definindo como guardião da “tradição gaúcha” (em formato artificializado, regrado, ufanista, conservador); alinhado às classes dominantes; e se infiltrando nas esferas estatais, consolidou-se a hegemonia do MTG. Sua exaltação aos líderes farroupilhas para celebrar o “gaúcho”, carrega uma contradição, pois os estancieiros chefes deste movimento não admitiam ser chamados de “gaúchos” (marginalizados) e sim de “sul-rio-grandenses”.
Pelo exposto até aqui, nos parece claro a significativa distinção entre tradição, cultura, identidade gauchesca e tradicionalismo.
*Este artigo será publicado em três partes.
**Nandi Barrios é engenheiro florestal, com trabalhos em comunidades quilombolas e indígenas.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.