O presidente russo, Vladimir Putin, realizou uma visita de quatro dias à China, onde participou da cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), em Tianjin, e das comemorações chinesas da vitória sobre o Japão na Segunda Guerra Mundial, em Pequim. Durante a extensa agenda no país asiático, Putin reforçou a parceria estratégica com a China e com diversos países do Sul Global.
Ao fazer um balanço da visita na última quarta-feira (3), o líder russo falou sobre os princípios da multipolaridade, um dos principais objetivos estratégicos da Rússia e de seus aliados nos últimos anos, como uma forma de alternativa à ordem internacional hegemonizada pelo Ocidente.
“Quanto ao surgimento ou não de um mundo multipolar, em geral, seus contornos já surgiram, é claro. Mas, ao mesmo tempo, eu não falaria de quaisquer dominantes neste mundo multipolar. Afinal, quando falamos de multipolaridade, isso não significa que novas potências hegemônicas devam surgir. Ninguém levanta tais questões: nem dentro da OCX, nem dentro dos Brics. Todos os participantes das relações internacionais devem ter direitos iguais e todos devem estar na mesma posição do ponto de vista do direito internacional”, afirmou.
Um dos principais resultados práticos da agenda do presidente russo na China foi o acordo entre a empresa petroleira russa Gazprom e a chinesa CNPC sobre a construção do gasoduto Força da Sibéria 2, um novo canal de fornecimento de gás russo para a China através da Mongólia.
A discussão sobre o gasoduto, que pode transformar a Rússia no maior fornecedor de gás da China, vem ocorrendo há anos. No contexto das sanções ocidentais, a expectativa é que este seja mais um passo importante para compensar a perda das exportações de petróleo e gás para o mercado europeu nos últimos anos.
Vladimir Putin, ao comentar sobre os principais aspectos do acordo, afirmou que isso criará vantagens competitivas para os seus aliados chineses, porque “eles receberão o produto a preços de mercado equilibrados, não a preços inflacionados, como estamos vendo agora na Zona do Euro, por exemplo”.
“A Gazprom é uma das nossas empresas líderes. Ela está entrando em novos mercados em expansão. No total, através da Mongólia, forneceremos 50 bilhões de metros cúbicos de gás. Atualmente, temos 38 bilhões. Depois, mais algumas rotas, que também aumentarão. No total, o fornecimento será superior a 100 bilhões de metros cúbicos de gás”, acrescentou.
‘Institucionalização do mundo multipolar’
A agenda na China também teve um peso simbólico e um movimento geopolítico importante. De um lado, as comemorações da parada militar em Pequim mostraram ao mundo o estreitamento entre Rússia, China e Coreia do Norte, com Xi Jinping recebendo Vladimir Putin e Kim Jong-un como seus principais convidados durante o desfile militar.
Já no contexto do recente aumento das ameaças dos Estados Unidos contra os países do Brics, a cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai protagonizou o encontro entre os líderes da Rússia, da China e da Índia, enviando um claro sinal que Pequim e Nova Déli, apesar das históricas tensões nas relações bilaterais, estão dispostos a expressar unidade no atual cenário internacional.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, observa que mesmo que este encontro entre o presidente indiano, Narenda Modi, e Xi Jinping não represente uma aliança concreta, é um claro aceno da disposição dos países em buscar convergências quando necessário.
Nesse sentido, segundo o analista, a mais recente Cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai e outros eventos que foram realizados no período representaram um caminho lógico de “institucionalização do mundo multipolar”.
“E o símbolo dessa posição de institucionalização da construção de um mundo multipolar se deve muito à chamada grande tríade: Putin, Xi Jinping e Modi. A demonstração de, mesmo que de não unidade, mas de convergência de interesses das três das quatro maiores economias mundiais, de três potências nucleares e dos três maiores países da Eurásia. Assim, esse é o resultado simbólico, prático e político mais importante desta visita”, destaca.
Vale lembrar que a cúpula em Tianjin foi o palco da primeira visita do primeiro-ministro Narendra Modi à China desde 2018. As relações entre os dois países passou a se deteriorar a partir de 2020 em meio a disputas territoriais na região fronteiriça entre os dois países.
Reorientação para o Oriente
A agenda na China foi a segunda grande viagem internacional de Vladimir Putin em menos de um mês, depois da cúpula do Alasca, em que o líder russo se reuniu com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para discutir a resolução do conflito na Ucrânia.
Desta forma, a visita à China tem um aspecto político e simbólico muito forte. Na Rússia, essa movimentação diplomática do presidente repercutiu como uma espécie de consolidação do processo de “reorientação para o Oriente”. Em outras palavras, Putin e Xi Jinping preparam o terreno para uma nova ordem internacional pós-ocidental.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, hoje, a ordem internacional passa por um processo de uma “transferência de eixo do Atlântico para o Oceano Pacífico”. “Esse processo não começou hoje e ainda vai continuar por algumas décadas. As maiores atividades de negócios, as maiores potências econômicas, nucleares, tudo se concentra no Oceano Pacífico, e não no Atlântico, ou seja, o eixo do mundo foi alterado diante dos nossos olhos nas últimas décadas”, aponta o cientista político.
Do ponto de vista do Kremlin, a noção de “reorientação para o Oriente” – logo, um abandono do Ocidente – representa uma política de prioridade da Rússia ao desenvolvimento das parcerias com os países da Eurásia e do Sudeste Asiático.
Trata-se de uma estratégia geopolítica russa que vem se desenhando há bastante tempo, mas ganhou um impulso real a partir da crise na Ucrânia, em 2014, que foi seguida de uma guerra civil no país, a anexação da Crimeia por parte da Rússia e o início das sanções ocidentais contra Moscou.
Com a eclosão da guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, e o consequente isolamento sem precedentes da Rússia promovido pelo Ocidente, o Kremlin também impulsiona suas relações com Índia e China, reorientando toda a matriz de exportações de recursos energéticos para esses países, alcançando níveis recorde de balança comercial com Nova Déli e Pequim.
“Assim, é bastante lógica a movimentação da Rússia em direção ao Oriente, movimento que pressupõe certos elementos, como a intensificação de contatos e alianças diversas, o desenvolvimento de contatos econômicos com países orientais, e isso também representará o desenvolvimento das regiões orientais da Rússia”, completa Vladimir Shapovalov.