Quando o relógio bateu às 15h, eu estava a dois quarteirões do cruzamento entre a avenida Paulista e a Peixoto Gomide, correndo para alcançar o trio elétrico que foi palco da manifestação “Reaja Brasil”, em apoio ao réu e ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A um quarteirão, fiquei atrás de um grupo grande de homens, a maioria vestida de preto e azul, que, por sua vez, seguia como legendários, o pastor Silas Malafaia, o tradicional organizador do evento.
Passei incólume pela caravana que exalava testosterona, afinal, estou acostumada a cobrir os atos da extrema direita. Ao entrar na Peixoto Gomide em direção à Paulista, passei por outras figuras que mais pareciam estar dissociadas da realidade. Primeiro, vi dois homens vestidos de batom numa referência à Débora Rodrigues dos Santos, que escreveu a frase “perdeu, mané” na estátua do Supremo Tribunal Federal (STF) durante os atos golpistas de 8 de janeiro.
A referência é carta marcada nos atos bolsonaristas, que pedem anistia aos condenados pela trama golpista e que, hora ou outra, levantam um batom de Itu em meio à multidão amarela.
Na sequência, esbarrei com um homem vestido com as cores e os símbolos da bandeira dos Estados Unidos em riste, pronto para obedecer às ordens de quem vinha de cima do trio. Talvez o chapéu no estilo Tio Sam e os óculos de sol espalhafatosos os atrapalhassem na obediência, mas até aí os seus ídolos registraram todos os passos para um golpe de Estado.
Mergulhada entre cartazes, bandeiras dos Estados Unidos e de Israel e por perucas verde-amarelo, perdi a oportunidade de ver a bandeira estadunidense que cobriu parte dos manifestantes e envergonhou o restante do país.
O equívoco, se é que assim podemos classificar, atingiu proporções tão grotescas que até mesmo Malafaia, acostumado a aplaudir e ser aplaudido por absurdos, viu-se forçado a erguer a voz em crítica: “A minha vontade era pedir para arrancar. Esse pessoal não tem noção nenhuma”, como se o bom senso fosse uma tônica dos personagens que vi e dos réus no STF.
Com uma pulseira preta e fúnebre em meu pulso, com os dizeres “Reaja Brasil” e “Imprensa”, subi no trio elétrico e fiquei em uma parte reservada a subcelebridades, como vereadores que vivem nos túneis do bolsonarismo, apoiadores com até 5 mil seguidores e, claro, os jornalistas — com quem, aliás, pude dividir alguns olhares de espanto para o meu alívio.
Lá de cima, tive a real dimensão da manifestação, que depois fiquei sabendo ser da ordem de 42 mil pessoas, maior do que os últimos atos.
Obviamente, o julgamento impulsionou as pessoas a saírem de casa vestidas de batom e Tio Sam para defender “O Indefensável”. Mas, ainda que sejamos brasileiros, me amedrontei com todos gritando em uníssono “Fora, Moraes” e “Lula Ladrão”. E não foram as palavras esbravejadas que me assustaram, tampouco os olhos lobotomizados, que mesmo de longe eram visíveis.
Ainda é difícil encontrar as palavras certas para descrever o medo. Mas imagine 42 mil pessoas gritando com unhas e dentes a mesma coisa no mesmo ritmo e olhando para o mesmo ponto. Você pode ter imaginado uma multidão esbravejando “Heil, Hitler”. Realmente, contra semelhanças não há argumentos, e contra o medo até pensei em me fazer de repórter da Revista Oeste.
Foram as pessoas, olhando para cima, em direção ao trio elétrico, grudadas no asfalto da avenida Paulista — não que isso signifique pés no chão — o que mais me assustou. Ver Silas Malafaia, Michelle Bolsonaro, o deputado estadual Tomé Abduch (Republicanos-SP), o ex-vereador Fernando Holiday (PL-SP) e o ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Novo-PR) — este último cassado, em 2023 — falando em censura e ditadura é de revirar os olhos, mas não chega a dar o medo que uma multidão causa.
É verdade que alguns deles são mais capciosos do que outros, e este é o caso do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que veste a fantasia da tecnocrata, gestor e centrista, mas pega o microfone para defender uma liderança da extrema direita, associa a Suprema Corte do país à tirania, escolhe um secretário de Segurança cuja política é representada por um homem sendo jogado ponte abaixo por policiais militares ou emplaca projetos de lei para aparelhar órgãos do estado paulista.
Malafaia chamar a esquerda de “vagabunda”, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) defender que Alexandre de Moraes é um “ditador” e Michelle Bolsonaro se lamentar dos cuidados agora necessários com seu marido não me gera tanto incômodo. Na verdade, me irrita.
Mas Tarcísio de Freitas subir no palanque e ir a Brasília articular uma anistia, na verdade, me preocupa. Com o ex-presidente fora de campo, é o governador paulista-carioca quem parece ter mais capacidade de herdar o capital político do Indefensável, ainda que sob os esperneios de Eduardo e Carlos Bolsonaro.
Meu companheiro costuma dizer que, melhor do que a condenação de Bolsonaro e seus comparsas, é a derrota do bolsonarismo nas ruas. Eu acho bonito, e às vezes me sinto contagiada com a visão a longo prazo e o otimismo. Mas sou uma pessimista contumaz que concorda com seus pares de que o bolsonarismo é sintoma da crise mais profunda do sistema.
O ensaísta alemão Robert Kurz aponta que o capitalismo, ao se expandir além de seus limites estruturais e ontológicos, escancara suas contradições inerentes. O desfecho desse processo é o empobrecimento crescente de vastas parcelas da população, a ampliação das desigualdades sociais e a emergência de um caos civilizatório. É difícil, portanto, ser otimista, mas lembro que o tempo da História não é o mesmo tempo da Justiça. Que nela confiemos!