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A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às quintas-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na...ver mais

Entre o velho e o novo: configurações atuais do mundo do trabalho

A narrativa do 'empreendedorismo' apenas renova velhas práticas de precarização, revestindo-as de um discurso de 'falsa' liberdade e autonomia.

Desde pelo menos os anos 1970, há um intenso debate sobre o futuro do trabalho assalariado e o suposto fim da “sociedade salarial”. Autores e autoras chegaram a propor a ideia de uma “sociedade do ócio” ou de um processo de “desassalariamento”, no qual novas formas de organização do trabalho substituiriam o emprego formal como eixo central da economia.

Mas o capitalismo pode prescindir do trabalho assalariado? No caso brasileiro, olhando para a estrutura do trabalho que se constituiu ao longo da formação econômica e social brasileira no século 20, quando se compara com os dias atuais, as mudanças estruturais são menos profundas do que se imagina.

Apesar do crescimento do trabalho por conta própria e de formas chamadas “autônomas”, o assalariamento continua a ser determinante para a organização do trabalho, convivendo lado a lado com a informalidade, parte constitutiva de nossa formação econômica e social, ele sempre este lá, mesmo nos momentos de elevado nível de assalariamento com direitos e proteção social. 

A presença de um contingente enorme de pessoas à margem do sistema não é uma anomalia, mas parte do seu funcionamento. Essa força de trabalho, que se integra na periferia do sistema produtivo, não é absorvida pelo capitalismo dada a própria dinâmica do sistema de acumulação capitalista, que se expande à medida em que preserva suas margens de lucro.

Portanto, a ampliação depende da capacidade do mercado de bens e serviços absorver a sua capacidade produtiva, dos investimentos em tecnologia e aumento da produtividade, realidade que se complexificou com a dinâmica financeira.

O Brasil, historicamente, sempre teve alto nível de informalidade. Hoje, cerca de 26 milhões de pessoas trabalham por conta própria, número que se mantém estável quando se consideram as últimas duas décadas. Esse dado revela que a informalidade é um traço estrutural da nossa formação econômica e social. A narrativa do “empreendedorismo” apenas renova velhas práticas de precarização, revestindo-as de um discurso de “falsa” liberdade e autonomia.

Trabalho e adoecimento

As condições de trabalho também mudaram de forma significativa. Até o início dos anos 2000, o adoecimento ocupacional era predominantemente físico, resultado de atividades repetitivas e sem ergonomia. Hoje, as doenças mais frequentes são psicossociais, associadas a metas inalcançáveis, pressão constante, isolamento e assédio moral ou sexual.

O ambiente de trabalho, que já foi espaço de construção de vínculos e solidariedade, hoje se fragmenta com a rotatividade, a multiplicidade de vínculos e a ausência de pertencimento coletivo. Essa desagregação social aprofunda o individualismo e enfraquece a ação coletiva.

Precarização e crise econômica

Atualmente, 85% da força de trabalho formal recebe entre 1 e 1,5 salários mínimos. Desde a crise de 2015 e 2016, o país não conseguiu retomar um ritmo de crescimento sustentável e nem gerar empregos de melhor qualidade. A reforma trabalhista ampliou as possibilidades de contratação precária e abriu caminho para a expansão de plataformas como a Uber, que se consolidou no Brasil no auge da crise e do desemprego.

Hoje, muitos trabalhadores acumulam essa atividade com outros trabalhos, tentando complementar rendas que raramente ultrapassam um salário e meio. A pejotização e o registro como MEI são apresentados como alternativas modernas, mas, na prática, mantêm milhões de trabalhadores sem proteção efetiva. Metade dos MEIs não contribui para a previdência, o que pode gerar, no futuro, pressões por novas reformas restritivas.

Proteção social em disputa

Neste segundo semestre de 2025, o STF deve decidir sobre a possibilidade de contratação de qualquer trabalhador como pessoa jurídica, independentemente da subordinação. Se aprovado, esse modelo aprofundará a fragilização da proteção social.

É urgente discutir políticas que garantam proteção a todas as pessoas que necessitam, independentemente do vínculo de trabalho. Isso vai além da assistência social: envolve rever critérios excludentes de programas como o BPC, ampliar políticas de cuidado de forma a não sobrecarregar as mulheres e enfrentar a aversão ao Estado alimentada pelo neoliberalismo.

Assim como governos podem atuar como emprestadores de última instância para salvar bancos, podem e devem atuar como empregadores de última instância, assegurando ocupações socialmente necessárias e garantindo bem-estar.

A centralidade do trabalho assalariado permanece, mas ele convive com novas formas de exploração, fantasiadas de modernidade. O desafio é construir políticas que ampliem direitos, fortaleçam vínculos coletivos e coloquem a economia a serviço da vida.

*Marilane Teixeira é economista feminista, professora e pesquisadora do CESIT/ Unicamp e integrante da diretoria da SOF Sempreviva Organização Feminista. Este artigo é uma edição de sua apresentação na roda de conversa “Feminismo intempestivo”, organizada pela SOF em junho de 2025.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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