Moradores de diversas comunidades do Distrito Federal se reuniram nesta quarta-feira (10) em frente ao Palácio do Buriti, em Brasília, em uma marcha em defesa das Áreas de Regularização de Interesse Social (Aris). O ato, organizado pelo movimento Vida e Água para as Aris, teve como pauta principal a inclusão dessas comunidades na revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot), documento que orienta o uso e ocupação do solo no DF.
As Aris são territórios legalmente reconhecidos como áreas destinadas à moradia popular. Estima-se que mais de 200 mil pessoas vivam nesses espaços, na maioria das vezes sem acesso a serviços básicos como saneamento, água potável, coleta de lixo e transporte público. A maioria dessas comunidades foi formada a partir de ocupações por necessidade, em áreas que foram posteriormente classificadas como passíveis de regularização.
A mobilização, que começou no Palácio do Buriti e seguiu até a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), resultou na entrega de uma carta com 13 propostas elaboradas pelas próprias comunidades. As demandas foram construídas coletivamente ao longo de cinco anos por meio do Projeto Vida e Água, uma iniciativa de extensão da Universidade de Brasília (UnB), que atua com pesquisa-ação e empoderamento popular desde a pandemia de Covid-19.
“O Estado abandona essas populações. Quando aparece, é para reprimir com violência, usando tratores e bombas, como vimos recentemente na Fazendinha”, afirmou Maria Luiza Pinho Pereira, professora da UnB e vice-presidenta da Associação dos Docentes da universidade (ADUnB). Segundo ela, a exclusão das Aris do novo Pdot significa “perpetuar a insegurança jurídica e negar o direito à cidade a milhares de pessoas”.
Remoções e violência

O ato teve a presença de vários moradores que já sofreram com despejos forçados. Yolanda Souza, moradora da Fazendinha, relembrou a violência da operação realizada em julho deste ano, na qual teve sua casa removida pelas tropas do governo: “Nós estávamos dentro de casa quando vimos o comboio descendo. Jogaram bomba, tiraram a gente de dentro, jogaram nossas coisas na rua e destruíram tudo. A gente é cidadão, a gente trabalha. Só queremos ter onde morar.”
Outra liderança presente foi Maristela Silva, moradora do Condomínio Porto Rico, em Santa Maria, que foi despejada com suas duas filhas e seis netos. “Mesmo com documento, perdi minha casa porque o empresário se dizia dono, sem comprovação nenhuma. O juiz mandou tirar a gente no meio da chuva. Disseram que iam me mandar para abrigo, mas como levar seis netos para um abrigo? Fiquei na associação até conseguir outro lugar. Tudo sem apoio do Estado.”
A carta entregue aos deputados distritais da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos e Socioambientais das Aris, presidida por Fábio Félix (Psol-DF), apresenta propostas que vão desde a regularização fundiária até a ampliação de infraestrutura urbana. Entre os pontos principais estão: urbanização das 56 Aris reconhecidas, garantia emergencial de água potável, iluminação pública, centros comunitários, acesso à internet e inclusão das Aris no PAC-DF e nas leis orçamentárias.
Na CLDF, os moradores receberam apoio de vários deputados, que defenderam que o governo suspenda as operações de derrubada de moradias até a aprovação do Pdot.
“Espero que esta seja a primeira de muitas marchas e movimentos importantes em torno da disputa do território e pelo direito à moradia”, disse Felix. “Só vamos arrancar a regularização no Pdot com luta, não tem outra forma”, emendou. Ainda em solidariedade à causa, Felix acrescentou: “Se o Pdot vai ser votado até dezembro, por que não parar as derrubadas até lá?”.
O deputado Gabriel Magno (PT) destacou que as Aris são “áreas fundamentais para se pensar no desenvolvimento econômico, social e ambiental do DF” e elogiou a mobilização como “mais um alerta para a importância do debate em torno do PDOT”. O distrital também defendeu a interrupção imediata de todas as derrubadas. Os deputados do PT Chico Vigilante e Ricardo Vale também se solidarizaram à luta dos moradores das Aris, assim como o deputado Rogério Morro da Cruz (PRD).

Pdot para poucos
“É inconcebível que, ao lado da capital da República, tenhamos centenas de milhares de pessoas sem água potável. A falta de regularização impede até a instalação de uma ligação de água”, afirmou Paulo César, diretor do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos do Distrito Federal (Sindágua). Ele defendeu que a regularização é o único caminho para garantir o acesso universal ao saneamento básico, especialmente nas comunidades mais vulneráveis.
Para os moradores, o sentimento de insegurança é constante. “Toda vez que passa um comboio ou um grupo de polícia, todo mundo entra em pânico achando que vai ser derrubado de novo. Ninguém dorme em paz”, disse Jessinéia de Lima, moradora da Fazendinha e integrante do coletivo Mulheres do Sol. Segundo ela, após a última operação, as famílias não receberam abrigo adequado nem qualquer tipo de ressarcimento.
A professora Maria Luiza também criticou o caráter elitista da proposta de revisão do Pdot apresentada pelo governo. “O plano foi pensado para favorecer o mercado imobiliário e desconsidera completamente os territórios populares. O próprio governo descumpriu o prazo legal de revisão, que deveria ter ocorrido em 2019. Só em 2023 o processo começou, e mesmo assim, sem participação efetiva da população mais afetada.”, destacou.
A legislação federal exige que todos os municípios e o DF elaborem e atualizem seus planos diretores com participação social. No entanto, os movimentos denunciam que as propostas comunitárias foram ignoradas até o momento. “A carta com os 13 pontos é o resultado de anos de diálogo, de escuta com quem vive nesses territórios. Estamos aqui exigindo que isso seja respeitado”, disse Jessinéia.
Yolanda Souza contou emocionada o descaso do governo: “O governador foi na Fazendinha pedir voto, prometeu que não ia ter mais derrubada. E depois mandou ir lá derrubar tudo. Eu olho para o meu lote vazio e fico perguntando a Deus como vou reconstruir. Tiraram nosso sonho.”
A proposta das comunidades é que os territórios das Aris sejam inseridos na poligonal urbana do Pdot, condição necessária para receber investimentos públicos. “Só com a regularização teremos escola, UBS, creche, asfalto. Fora disso, continuaremos vivendo como se não existíssemos para o Estado”, explicou Maria Luiza.
O movimento Vida e Água para as Aris atua em dez eixos territoriais e vem fortalecendo uma rede de lideranças populares que participou de todas as audiências públicas sobre o Pdot. Em abril deste ano, mais de 300 moradores estiveram na CLDF na primeira audiência dedicada exclusivamente às Aris. A marcha desta quarta-feira é parte dessa mobilização.
“O Pdot não pode ignorar as comunidades que seguram essa cidade nas costas. A nossa luta é por dignidade, por justiça territorial. Queremos o direito de viver, de criar nossos filhos com segurança, de ter acesso à cidade como qualquer outro cidadão do DF”, concluiu Maristela Silva.