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Gastronomia moderna pode impactar modos de vida tradicionais, aponta pesquisadora

Tese mostra contradições na alta gastronomia e aponta a necessidade de repensarmos nossa relação com o alimento

Ao entrar em um restaurante é possível que o consumidor não pense sobre quais caminhos o alimento percorreu para chegar até ali e quais disputas de poder cruzaram esses caminhos. Provocada por essa questão, a cientista social Thalita Ferreira estudou em seu doutorado a relação entre a alta gastronomia brasileira, os chefs de cozinha e as comunidades tradicionais e indígenas. 

Na tese Neocolonialismo azeda relação entre chefs e povos nativos, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a pesquisadora demonstra que muitas vezes essa troca não é harmônica e traz prejuízos principalmente para os povos e seus territórios. 

“Nesse espaço de produção tão importante [alta gastronomia], que gera empregos e representa o Brasil fora, há muitas camadas de complexidade. A relação dos chefs com as comunidades produtoras dos ingredientes também vai apagando a história das comunidades, a agenda dos produtores, de quem cultiva de diferentes formas esses produtos que chegam à esfera dos restaurantes”, avalia.

Um dos exemplos que ganhou repercussão nacionalmente e é tratado pelo estudo de Ferreira foi o embate, em 2019, entre o chef Alex Atala, premiado e reconhecido nacionalmente  e internacionalmente, e o povo quilombola Kalunga, que vive no Cerrado brasileiro, cujo dia nacional é comemorado neste 11 de setembro. 

Na época, o instituto do cozinheiro lançou uma linha de produtos eco sociais e registrou marcas da baunilha do Cerrado, que é considerada um alimento tradicional dos quilombolas. Ele argumentou que fez isso para ajudar a preservar a iguaria, mas os povos, que criticaram a medida, disseram que sequer foram consultados. 

“Esse desrespeito, essa falta de cuidado, esse discurso de proteção de um ingrediente que, ao mesmo tempo, é patrimônio genético e cultural, culminou no fracasso do projeto e na quebra da confiança entre o Instituto Atala e a comunidade. Esse caso mostra como a colonialidade e a forma como a gastronomia se organiza acabam violentando e diminuindo o que essas comunidades representam e produzem”, avalia Ferreira. 

Confira a entrevista completa: 

Brasil de Fato – No que consistiu a sua pesquisa? Quais foram os principais temas abordados na sua tese?

Thalita Ferreira –  Eu comecei essa pesquisa já há algum tempo. A minha ideia era compreender um pouco o que acontecia no caminho que ligava, de diferentes maneiras, o universo da gastronomia com o universo das comunidades tradicionais e indígenas.

Essa pesquisa começou em 2018 e, a partir de 2019 e 2020, por conta da pandemia e de outros eventos, comecei a me perguntar por quais razões pessoas de fora do universo da gastronomia depositam crença e prestígio com relação a esse universo, de tal forma que seja justificável imaginar que a relação entre gastronomia e comunidades tradicionais e indígenas possa ser benéfica para as comunidades e para a natureza, como se isso fosse uma coisa dada, como se bastasse ter alguém da gastronomia agindo nessa cadeia para gerar benefícios para as comunidades envolvidas.

Antes da pesquisa, como foi sua experiência em restaurantes de alta gastronomia brasileira? Como são os bastidores?

Na verdade, antes de eu cursar ciências sociais e poder fazer esse trajeto do mestrado e depois do doutorado, eu havia feito uma graduação em hotelaria, me especializei em gastronomia com um curso de extensão, todos na cidade de São Paulo, e entrei na área. 

Assim que comecei a trabalhar em hotelaria, já fui direto para a cozinha. Eu já tinha essa intenção. Por algumas razões, eu não fiz o curso de gastronomia direto. Em algum momento, tive a oportunidade de prestar um processo seletivo para um restaurante considerado de alta gastronomia.

E, assim como teve várias vantagens, de muito aprendizado, é realmente a materialização das diferentes formas de expropriação, pensando a partir da cozinha. Na tese, eu tento falar um pouquinho sobre isso para pensar como esse modelo, que é bastante predatório, de exploração do trabalho culinário e dos profissionais de gastronomia, também se hierarquiza e acaba recaindo de uma maneira distinta sobre algumas pessoas.

Eu falo um pouco sobre como a cozinha é bastante hostil, de uma maneira geral, com as mulheres, em especial com as mulheres negras, e, ao mesmo tempo, sobre esse trabalho com os chefs. 

A gente percebe que nesse espaço de produção tão importante, que gera tantos empregos e renda, que representa o Brasil fora do Brasil de várias formas, há muitas camadas de complexidade

Mas, a partir dos restaurantes, essa relação dos chefs com as comunidades produtoras dos ingredientes também vai apagando a história das comunidades, a agenda dos produtores, de quem cultiva de diferentes formas esses produtos que chegam à esfera dos restaurantes.

É possível entender de onde surge a romantização e gourmetização desses padrões altos dos restaurantes?  Conseguimos traçar paralelos com a história do Brasil?

Conseguimos sim. Quando comentei sobre como, de uma maneira geral, a sociedade deposita confiança e crença na gastronomia como sinônimo de cultura e desenvolvimento, vamos moldando esses conceitos. Eu tento falar sobre isso na tese, que gastronomia é cultura, mas não é qualquer cultura. Existem várias outras autoras e autores que falam sobre isso e que eu cito.

Toda essa forma de moldar e, ao mesmo tempo, restringir o que significa gastronomia vai diminuindo esse conceito, fazendo com que algumas coisas entrem no ideário da gastronomia e outras fiquem de fora. 

A construção dessas diferentes ideias transforma a gastronomia em um depositário de boas crenças. Isso está muito ligado a uma ideia específica de cultura e desenvolvimento. Esse processo de institucionalização da gastronomia atinge os modos de vida e as formas de cultivo desse universo que eu chamo de sociodiversidade, que produz sociabilidades de maneira distinta do ideário moderno, de onde vem a gastronomia. Essas coisas estão ligadas por conta disso.

A maneira de produzir cultura a partir da gastronomia, quando falamos dessa relação com comunidades tradicionais, acaba atingindo de forma muitas vezes violenta e quase sempre redutora da complexidade desses outros universos que não constituíram o ideário moderno.

Em 2019, Alex Atala, chef de cozinha premiado, se envolveu em uma polêmica com a comunidade quilombola Kalunga, que vive na divisa entre Goiás e Tocantins. Eles se sentiram lesados quando Atala lançou uma linha com produtos da região, registrando as iguarias no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Como foi esse caso e como ele se relaciona com a sua pesquisa?

Eu tento tomar um cuidado também na tese, porque o Alex Atala, do ponto de vista sociológico, é um exemplo muito bem acabado, mas não é o único. O que eu chamo de fracasso do projeto Baunilha do Cerrado se deu, sobretudo, pelo desrespeito aos protocolos comunitários.

Fiz uma consulta, a partir de notas públicas divulgadas em 2019 pela Associação Pulo do Kalunga, pela Central do Cerrado e outras entidades envolvidas. Esses documentos, que são públicos, mostram que o Instituto Atala desrespeitou um acordo da comunidade e cuidou pouco da comunicação sobre o que seria o projeto e quais seriam os benefícios.

Além disso, houve uma injustiça, pois não estamos falando de algo pequeno. O Quilombo Kalunga é o maior território quilombola do Brasil. São dezenas de comunidades em três estados diferentes: Goiás, Tocantins e Minas Gerais. É muita gente, e era necessário um cuidado com a comunicação, que aparentemente não aconteceu.

Algumas pessoas ligadas à Associação do Quilombo Kalunga não se sentiram contempladas dentro dessa ação do Instituto Atala. O lançamento da linha de produtos eco sociais foi também um problema de comunicação, porque várias pessoas ligadas à comunidade disseram que mal sabiam da iniciativa, não haviam sido convidadas e sequer tinham informações sobre a data de divulgação.

Esse desrespeito, essa falta de cuidado, esse discurso de proteção de um ingrediente que, ao mesmo tempo, é patrimônio genético e cultural, culminou no fracasso do projeto e na quebra da confiança entre o Instituto Atala e a comunidade. Esse caso mostra como a colonialidade e a forma como a gastronomia se organiza acabam violentando e diminuindo o que essas comunidades representam e produzem.

Há mais de 500 anos, o Pau-Brasil, bem natural exclusivo do nosso país, também foi apropriado e está no embrião da colonização. Qual é a relação desse exemplo com a atualidade?

Essa apropriação é muito longa. Ao longo da tese, dou exemplos disso. Por exemplo, o do trigo, no século 16. O historiador João Monteiro explica que, logo na chegada dos portugueses ao planalto paulista, a primeira devastação de grupos indígenas foi por conta do trigo, para atender ao gosto por pão e exportar excedente para Portugal. 

Tivemos o Pau-Brasil, depois o trigo, várias drogas do sertão e especiarias. Todas dependeram de um conhecimento profundo dos povos nativos e, depois, também dos povos escravizados. Mas isso nem sempre entra na história. A produção simultânea de natureza e cultura é uma produção deliberada desses povos e de seu contato íntimo com o território. Hoje, quando falamos dos problemas socioecológicos e dos desequilíbrios que atingem a sociedade, não tem como não fazer um paralelo com o que já aconteceu. 

Para quem vive em grandes capitais, provavelmente vai se deparar com restaurantes que exibem placas de alimentos vindos de comunidades tradicionais. Quais cuidados precisamos ter como consumidores? 

Penso que a primeira coisa é o que estamos fazendo agora: levar o debate adiante, não romantizar e lembrar que, quando entramos em um restaurante, estamos em um espaço de capitalização do trabalho humano e dos recursos da natureza.

Além disso, penso em duas coisas. Primeiro, no restaurante, perguntar mesmo, provocar os donos para saber mais sobre as comunidades produtoras. Podemos questionar, conversar com o garçom, pedir para o chef vir à mesa e trocar ideias. 

Segundo, refletir sobre como construímos nossos gostos. A partir do momento em que pensamos na possibilidade de expandir nosso gosto, que não se atém às estéticas produzidas e reproduzidas pela gastronomia, podemos incluir outros agentes e ingredientes. É a sociobiodiversidade de fato, social, cultural e ambiental. Nos resta essa provocação sobre nossa produção gustativa e estética em relação ao mundo, que inclui natureza, cultura e gastronomia.

Conversa Bem Viver

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