Por Luciano Mendes
Ontem, ao longo do dia, e depois de encerrado o mais medonho voto que se tem notícia na história do STF, abundam teorias sobre as razões que levaram o ministro a proferir tantas palavras de descaso com as instituições democráticas do país e, sem dúvida, de contradição com seu passado longínquo ou recente.
De busca do direito vitalício, quiçá hereditário, de comprar perucas americanas de grife e conquista de um possível assento num governo bolsomínio de qualquer estirpe, passando pela proteção aos negócios da família, a internet foi invadida por explicações mais ou menos plausíveis para a “coisa”.
Confesso que a mim preocupam menos as razões de tais impropérios contra a democracia e o Estado Democrático de Direito e mais as pérolas doutrinárias exaradas do voto. Neste, três aspectos me chamaram mais a atenção, ainda que no tal texto lido haja mil e um fios soltos que mereceriam ser seguidos para onde vão dar.
Em primeiro lugar, foi impressionante, do começo ao fim do voto, o esforço por dar ares doutrinários ao uso extremamente formal de “organização criminosa”. Num (quase) puro exercício formal, Fux conseguiu livrar, de uma tacada, todos os réus da acusação que formaram uma organização criminosa para tomar de assalto a República. Não foi por acaso a sua reiteração da definição formal da coisa. Imagino que, além de resultar na absolvição da quadrilha bolsomínia, há outras consequências que a minha falta de competência na área não alcança.
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Fiquei eu pensando cá com os meus botões que se, por exemplo, um grupo de quatro ou mais pessoas se reunir ao longo de meses, mobilizando recursos próprios, planejando e executando um ato (e apenas um ato) criminoso – seja a destruição de uma cidade ou o assalto a um banco -, dada as formalidades da definição fuxiana, este grupo não poderia ser considerado uma organização criminosa, pois não cumpre todos os requisitos que a sua “jus filosofia” demanda.
Doutra sorte, as mesmas formalidades não foram usadas quando a “jus filosofia fuxiana” mobilizou teóricos do mundo todo para falar da democracia e, com menos vigor, da violência. Nestes casos, o que abundou foi a relativização quase total de uma e de outra.
No que se refere à democracia, como chamou atenção, já ontem, o Sakamoto, o passeio “teórico” do ministro foi por produzir uma peça “jurídica” em que a democracia não é um valor absoluto e que sua definição – e exercício fático – comparta nuanças. E estas nuanças, foram utilizadas para afirmar que os réus, de fato, não atentaram contra a democracia. No máximo, fizeram um exercício para tentar esticar os limites das “quatro linhas” do campo político.
Após muito ouvir, em certo momento pensei até que, para Fux, a democracia brasileira sempre foi tão cambaleante que melhor mesmo seria entregá-la de vez a quem de direito (ou de direita!) ou nos transformarmos em uma colônia dos EUA para que sejamos educados por uma democracia de fato – é claro que nem é preciso dizer que o gajo se esqueceu que, neste justo momento, a democracia americana vem sendo duramente atacada justamente pelos aliados da organização criminosa que ele dizia julgar.
Não menos catastrófica foi a noção de violência – política e institucional, individual e coletiva – mobilizada, ainda que não esmiuçada no voto, pelo ministro para tratar não apenas dos fatos arrolados nos autos, mas também da recente história do Brasil. Na “narrativa” do ministro, salvo Braga Neto e Mauro Cid, ninguém mais cometeu violência alguma contra o Estado Democrático de Direito. Como se disse acima, no máximo tentaram esticar a corda, com “narrativas” que não fugiram do plano legal e aceitável naquilo que, em seu voto, comporta o jogo político.
Que concepção de violência é esta que manda prender os manifestantes de 8 de janeiro, mas não o seu declarado líder? Ou que manda prender o ajudante de ordens mas não quem ordena? Ou que considera natural que um agente público, no exercício do poder constitucional, diz não ser necessário cumprir ordens judiciais? É que na “jus filosofia” fuxiana, a violência narrada não é violência. Por isto, é preciso prestar bem a atenção a que propósito se presta, na narrativa fuxiana, a ideia de narrativa (a repetição foi de propósito!).
Longe estamos, a considerar o voto do ministro, da consideração de que a política é o espaço-tempo do diálogo e que as “narrativas” nunca são discursos neutros; elas sempre têm propósitos e efeitos políticos e, logo, práticos. Mas, de novo, a considerar o voto do ministro, como as “narrativas” são vazias – é preciso considerar quantas vezes e com que propósito ele afirmou que as peças apresentadas pela PGR e pelo relator, ministro Moraes, são “narrativas” – os sujeitos que as proferem não podem ser penalizados por falaram o que quiserem, seja em que espaço for, inclusive utilizando instrumentos públicos da Presidência da República.
O discurso político que Fux proferiu longamente ontem – e de um modo quase ditatorial, é preciso lembrar – travestido de peça jurídica, é uma agressão ao Estado Democrático de Direito. E isto não porque propôs isentar os chefes da organização criminosa de qualquer responsabilidade, mas porque dá voz, nos mais altos escalões da República, a grupos que, dentre todos os seus interesses, não está o jogo democrático, o combate à violência política e a proteção aos Estado Democrático de Direito.
O julgamento em curso certamente resultará na condenação dos réus, mas o voto do ministro é um claro prenúncio que as quatro linhas do jogo foram claramente alargadas de modo a incluir, como legítimas, as narrativas e práticas nazifascistas da extrema direita.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal