Escrevo estas palavras enquanto a ministra Cármen Lúcia argumenta no Supremo Tribunal Federal (STF) o seu voto, formando maioria pela condenação de Bolsonaro (PL). Enquanto a escuto, me atravessa a lembrança de todas nós em 2018, no grito coletivo do Ele Não, que hoje atravessou o mármore frio do tribunal.
Penso também na cena cruel em que ele, deputado, dedicou seu voto no impeachment à memória do torturador de Dilma Rousseff, violência simbólica contra todas nós. Hoje escrevo com alívio, com lágrimas, e sobretudo com a certeza: essa condenação carrega o gesto plural das mulheres que nunca se calaram, que estiveram sempre na linha de frente da recusa.
Não tenho a pretensão de oferecer aqui uma análise jurídica minuciosa das falas, dos votos, das estratégias de convencimento. Há cientistas políticos, jornalistas e juristas que o farão com precisão. O que me interessa é a palavra das mulheres — aquelas que, tantas vezes, foram reduzidas ao ruído de fundo da política, como se não falassem, como se não tivessem voz. Pois quando falam, a reverberação ultrapassa o instante e marca uma fissura.
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Seu voto não foi apenas um ato jurídico, mas também um gesto histórico. Ao responder ao pedido de aparte de Flávio Dino, devolveu com ironia contida: “sim, desde que rápido, afinal, 2000 anos caladas, queremos falar.” Uma frase que não ergue a voz, mas que corta fundo. Um desvio elegante, uma borda fina, quase invisível e ainda assim afiada, capaz de deslocar a cena inteira.
E há nisso algo de subversivo: a derrota de Bolsonaro vir não dos gritos viris que sempre o sustentaram, mas das palavras de mulheres que ousam falar. A palavra feminina, tantas vezes interditada, tantas vezes ridicularizada, torna-se agora sentença. Subverte a lógica de um poder que se construiu sobre o silenciamento. Nos vinga, e a vingança aqui não é rancor, é justiça histórica, é correção de rota, é o gesto de inscrever no mármore frio do tribunal a marca quente de nossa recusa.
As mulheres foram, desde 2018, as primeiras a dizer “não”. O Ele Não foi mais do que um movimento político, foi grito coletivo de sobrevivência. Multidões de mulheres, em todas as capitais, costuraram juntas um corpo que o fascismo tentava fragmentar. Ali, antes de qualquer voto, já estava dado o diagnóstico: Bolsonaro encarnava o risco da violência de Estado contra mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+.
No governo, essa intuição se confirmou em cada palavra hostil, em cada corte de política pública, em cada insulto travestido de piada. Lembremos: a agressão verbal à deputada Maria do Rosário, anos antes, foi prenúncio. “Não te estupro porque você não merece.” Não era apenas ofensa pessoal, mas anúncio da lógica que viria: naturalização da violência de gênero como linguagem política.
E, no entanto, não foi silêncio o que se seguiu. Manuela d’Ávila enfrentou linchamento virtual, mas seguiu. Sônia Guajajara e as mulheres indígenas ocuparam Brasília com seus corpos pintados de urucum, cantando que não aceitariam o genocídio. Professoras, mães, estudantes, todas disseram não, cada qual à sua maneira. Uma infinidade de vozes que se encontravam na recusa de se submeter.
Na lógica patriarcal da política, acostumada ao embate viril, o gesto feminino é sempre lido como exceção, detalhe, capricho. Mas não é detalhe. É estrutura. Sem a força das mulheres, a resistência teria sido menor, mais frágil, talvez inexistente. Bolsonaro caiu porque as mulheres sustentaram, dia após dia, a recusa em normalizar o inaceitável.
Cármen Lúcia, ao votar pela condenação, escreveu nesse mesmo campo de resistência. Sua fala não é só jurídica, é também política, mesmo quando busca o tom técnico. A frase curta, a ironia discreta, a negativa polida ao excesso masculino — tudo isso nos lembra que o poder das mulheres não se mede pelo volume, mas pela insistência.
Simone de Beauvoir já nos dizia: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.” Vivemos essa crise, e as mulheres não recuaram. Ao contrário: foram elas que apontaram a porta de saída. E a cena de uma ministra do Supremo, em rede nacional, assinando a derrota de um ex-presidente misógino, é também a vitória simbólica de todas que marcharam em 2018, que denunciaram, que sofreram ataques virtuais e físicos.
Há quem tente reduzir o gesto da ministra à normalidade institucional. Eu prefiro lê-lo como dobra. Quando uma mulher fala, sobretudo numa cena política marcada pelo excesso masculino, a palavra não é nunca só palavra. É corpo, é história, é memória. Não foi apenas o voto de uma juíza: foi a ressonância de séculos de mulheres interditadas, finalmente audíveis.
Só por hoje eu gostaria de morar no vídeo que viraliza: Cármen Lúcia e Alcione, juntas, em uma cena improvável e necessária. O registro circula com a mesma irreverência que um refrão de Alcione, ecoando em celulares, atravessando conversas, invadindo grupos de família, rachando a sisudez das instituições. É por isso que o vídeo viraliza: não apenas pela graça do encontro improvável, mas porque reconhecemos ali um gesto que nos atravessa, a recusa em se deixar interromper, o humor que não se curva. É também o retrato de como a política, por um instante, se abre ao inesperado: mulheres cantam, riem, votam, condenam. E nesse gesto, que mistura música e sentença, riso e dor, se condensa a vitória plural das mulheres sobre aquele que sempre tentou silenciá-las.
Bolsonaro condenado não é apenas a derrota de um homem. É fissura em uma estrutura de poder que sempre tentou apagar as mulheres. Cada gesto feminino contra ele, das ruas às cortes, pavimentou esse caminho. Não é exagero dizer: a condenação é também vitória feminista. E como toda vitória feminista, não pertence a uma só, mas a todas.
Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.