No último registro audiovisual em vida do religioso revolucionário Frei Tito, o frade dominicano relata os detalhes da tortura que sofreu quando foi preso pela ditadura militar. Em entrevista ao documentário “Brazil: a report on torture”, filmado no Chile em 1971 por Saul Landau e Haskell Wexler, ele fala sobre a violência da qual foi vítima, de maneira objetiva e reafirma a própria voz como ferramenta de denúncia dos horrores praticados pelo regime.
Em dado momento da conversa, o ativista fala sobre a tentativa de tirar a própria vida, após sessões de tortura. Perguntado pelos documentaristas sobre o motivo do gesto, ele é enfático. “Cortei as veias do meu braço, em uma tentativa de pôr o fim à tortura e poder fazer assim, uma denúncia verdadeira de que o Brasil não é mais o país somente do samba, do futebol, do Pelé, mas é também um grande campeão da tortura“, diz o religioso.
No ano anterior, enquanto ainda estava preso, Frei Tito escreveu uma carta na prisão que ganhou o mundo. O documento detalhava os métodos de tortura sofridos, incluindo choques elétricos, socos, queimaduras e abuso psicológico intenso. Publicado na imprensa internacional, o texto é considerado um dos primeiros registros públicos dos horrores da ditadura militar. Nele, o calvário do religioso que virou mártir fica explícito, assim como o sofrimento imposto às outras vítimas do regime.
“A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo”, escreveu Frei Tito.
Em entrevista ao Brasil de Fato*, o historiador Régis Lopes, professor da Universidade Federal do Ceará, estudioso da trajetória do Frei Tito e curador do Memorial Frei Tito, afirma que os relatos do jovem militante deram ao Brasil e ao mundo a perspectiva dos horrores que aconteciam em território nacional. Segundo ele, o documento escrito na prisão circulou nas paróquias de todo o país.
“Eu encontrei pelo menos uns 15 processos de investigação e espionagem de padres e pessoas que estavam fazendo circular o relato do Frei Tito, como se fosse um folheto de cordel mimiografado”, conta ele sobre sua pesquisa. “O que as várias versões escritas desse relato de tortura e a circulação dele entre as pessoas que estavam sofrendo a repressão provam? Que não há dúvida que esse relato realmente se transformou numa espécie de memória nacional.”
Nascido em Fortaleza (CE), no dia 14 de setembro de 1945, Tito de Alencar Lima ingressou na vida religiosa como frade dominicano em 1967. Na adolescência, se engajou em organizações de cunho religioso e político, como a Juventude Estudantil Católica (JEC). Estudante de filosofia na Universidade de São Paulo (USP), ele se filiou à União Nacional dos Estudantes (UNE) e ajudou a encontrar o local para o histórico Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968.
O encontro foi invadido pela polícia e Frei Tito foi preso pela primeira vez, junto com outros 600 estudantes. Fichado e liberado, passou a ser investigado de perto pelas forças da repressão. A segunda e mais cruel detenção ocorreu em novembro de 1969, quando ele foi detido com companheiros dominicanos, incluindo Frei Betto e Fernando de Brito, dentro do próprio convento em que viviam.
Eles foram acusados de colaborar com a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Os frades não participaram de ações armadas, mas foram acusados de ajudar em fugas e acolher feridos. Na tentativa de forçar Frei Tito a delatar colegas, a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), impôs a ele um processo de destruição física e mental, além de uma campanha difamatória que tomou os maiores jornais do país.
“O que ele passou, vivenciou e sofreu não foi apenas um sofrimento individual”, aponta o professor Régis Lopes. “A figura do Frei Tito teve essa repercussão como experiência vivida, mas também como símbolo. Por exemplo, para a igreja de esquerda ele foi um mártir, ele sofreu martírio. E o martírio por uma causa muito justa e cristã, que é a igualdade entre todas as pessoas.”
Em janeiro de 1971, Frei Tito foi libertado. Ele fazia parte de um grupo de 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, capturado pela Vanguarda Popular Revolucionária, comandada por Carlos Lamarca. O religioso passou pelo Chile e pela Itália, mas foi na França que recebeu apoio da comunidade dominicana e se fixou. No entanto, o exílio não trouxe a paz.
As sequelas das torturas abalaram profundamente a personalidade do ativista, que passou a sofrer crises de pânico e ansiedade cada vez mais graves. Mesmo em profundo sofrimento mental, ele continuou a denunciar a tortura. Deu entrevistas, participou de reuniões e voltou aos estudos e ao trabalho humanitário.
Em um longo relato ao jornalista italiano Claudio Zanchettin, Frei Tito definiu a ditadura militar como um Estado policial fascista, conservador e repressivo. “A ordem é o poder estabelecido. Existe um clima de medo no povo. O Brasil é um país angustiado”. Os relatos do religioso à imprensa internacional se seguiram e moldaram parte importante da memória e do registro dos horrores da ditadura.
Em 10 de agosto de 1974, aos 28 anos, Tito de Alencar Lima, foi encontrado morto nos arredores de Lyon, na França. Ele se enforcou em uma árvore, como consequência das tenebrosas lembranças e do sofrimento emocional imposto pela tortura. Em seu quarto, amigos de convento encontraram uma frase simbólica, escrita por Tito em uma Bíblia. “É preferível morrer do que perder a vida”, dizia o texto.
O pesquisador Regis Lopes sinaliza que a percepção da importância do próprio relato como ferramenta para o bem coletivo permeou toda a trajetória revolucionária do religioso. “A força do Frei Tito está agindo aqui, por exemplo, neste momento. Estudar a história não é estudar o passado, é ver como o passado está agora.O Frei Tito traz muito afeto para nós, traz força, esperança e a vontade de viver de outra maneira.”
*Ouça a entrevista na íntegra no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.