O Festival de Cinema de Brasília chega à sua 58ª edição consolidado como um dos eventos mais tradicionais e prestigiados do cinema brasileiro. A abertura, na sexta-feira (12), contou com uma homenagem a Fernanda Montenegro e exibição de O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, uma das produções mais aguardadas desta edição.
Em Brasília, a sessão lotou a sala Vladimir Carvalho, no Cine Brasília, espaço simbólico de resistência cultural durante a ditadura militar. No sábado (12), elenco, diretor e equipe técnica conversaram sobre o filme com jornalistas na coletiva realizada no Cine Brasília.
Mendonça destacou sobre a importância da exibição nacional diante dos atuais acontecimentos políticos e do resgate da memória nacional sobre o período da ditadura militar no país, mas dentro de um contexto do cotidiano do brasileiro da época.
“Uma coisa que me chama muito a atenção é a lógica da sociedade. Nós, como nação, como país, temos a nossa própria lógica, que vem da cultura, da política e da nossa própria história.A democracia no Brasil hoje é bem diferente da lógica da democracia nos anos 60 e 70, quando existia o regime militar “, disse ele.
O filme, ambientado em 1977, em meio a ditadura militar, também reflete o Brasil nos tempos atuais com o avanço da extrema direita e pensamento neofascista no país.
“Nos últimos 10 anos, percebi a volta de coisas que estavam no museu das péssimas ideias do país. Palavras como homofobia, misoginia, racismo interno e o preconceito contra o Nordeste voltaram a aparecer. E aí me dei conta de que O Agente Secreto, ambientado em 1977, era muito sobre coisas que estavam voltando”, contou o diretor.
Memória e presente

O diretor também relevou que a ideia do filme surgiu das suas lembranças de infância em meio ao período da ditadura militar . “Eu tinha 9 anos em 1977. Meu tio Ronaldo nos levava ao cinema para nos proteger de uma crise familiar. Essas memórias afetivas do centro do Recife me marcaram muito. Comecei a escrever um filme sobre o passado, mas entendi que era também sobre o Brasil de hoje,” destacou Mendonça.
Um ponto importante que o filme vem resgatar, segundo Kleber Mendonça é a dificuldade do brasileiro com a preservação da memória enquanto história do país.
Nesse sentido o diretor apontou que o Brasil tem trauma de memória com a Lei da Anistia, como ficou conhecida a lei nº 6.683 de 1979, que perdoou todos os crimes políticos ou conexos a este, cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 8 de agosto de 1979. “Esse trauma reverbera até hoje. É muito estranho que, mesmo em 2025, continuemos lendo a combinação de palavras ‘anistia ampla, geral e restrita’. Isso vem de um trauma, uma quebra na formação espiritual do nosso país, que é esquecer todos os estupros dos assassinatos e torturas e ‘bola para frente, não vamos falar sobre isso não’”, criticou o cineasta.
A trilha sonora do filme, é de Mateus Alves e Tomaz Alves Souza, enquanto Moabe Filho e Tijn Hazen assinam o desenho de som. Segundo Mendonça a trilha também desempenha papel central na recuperação da memória histórica e cultural, sobretudo da Recife da época. E revelou que buscou sons autênticos da cidade, desde bandas de pífano de Caruaru até a os sons das ruas ruas, ônibus e vendedores, também foram importantes para a criação de uma paisagem sonora própria do filme.
“É muito importante que o som do filme tenha a identidade brasileira e do Recife. O som do Recife nos anos 70 é diferente de qualquer outro, e isso é central para contar essa história”.
A tentativa de apagamento da Cultura

Ainda sobre memória, Thales Junqueira, diretor de arte do filme, trouxe uma reflexão sobre a forma como o país lida com seu patrimônio: ruas, monumentos e habitações. Nesse sentido, comentou sobre os desafios da ambientação em Recife, na recriação cenários que remeteram ao Brasil de 1977, devido o abandono do centro da cidade.
“O filme se passa quase todo no centro do Recife, assim como muitas cidades brasileiras e da América Latina, passou a ser abandonado a partir da segunda metade do século, entrando numa decadência. A pobreza e o abandono que um caráter de conservador também, o centro de recife em alguma medida ficou tão abandonado que ele se preservou”.
Sobre a tentativa de apagamento da cultura como plano político da extrema direita, Kleber Mendonça relembrou o desmonte que a cultura passou nos últimos anos. “O cinema foi desmontado, a cultura desrespeitada e o Ministério da Cultura extinto. A extrema direita vê a cultura como inimiga, mas a cultura é também economia, e eles machucaram a economia”, ressaltou.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019–2022), o setor cultural brasileiro atravessou uma crise profunda marcada pela falta de investimentos e pelo enfraquecimento institucional. Logo no início da gestão, o Ministério da Cultura foi extinto e transformado em uma secretaria vinculada ao Ministério do Turismo, perdendo autonomia política e orçamentária. A execução da Lei Rouanet, principal mecanismo de fomento, foi paralisada ou reduzida com forte carga ideológica, o que impactou diretamente artistas, produtores e instituições culturais de todo o país.
“Esse filme só foi possível com a retomada das políticas públicas de cultura em 2022, que permitiram acessar fundos de financiamento há muito tempo desejados”, lembrou a produtora do filme, a francesa Emilie Lesclaux, ao comentar sobre os desafios para garantir recursos para a produção do O Agente Secreto.
Rede Feminina em cena

A força e a importância das personagens femininas no filme também são ponto de atenção no longa. O olhar do diretor Kleber Mendonça, na construção das personagens, Elza, Fátima, Teresa e Vitória, cria uma “rede feminina” marcante na trama. Segundo Maria Fernanda Cândido, que interpreta Elza, uma militante atuante em Recife durante a ditadura militar, existe uma presença feminina estratégica que sustenta a narrativa.
“Existe uma rede feminina muito interessante. No caso da Elza, ela usa informações que tem para ajudar refugiados políticos em perigo, arriscando a própria vida. É toda uma rede de apoio, em que as pessoas contam umas com as outras e se ajudam”, explicou a atriz.
A atriz Alice Carvalho que dá vida a Fátima, esposa já falecida de Marcelo (Wagner Moura) complementou a análise, destacando a dimensão simbólica da presença feminina frente à brutalidade masculina retratada no filme.
“O masculino é o vetor da brutalidade desses tempos, que também refletem os dias de hoje. Mas Wagner não atua sozinho: ele está sempre amparado por essa rede feminina, que lhe oferece proteção diante de uma pátria tão brutal. Do meu ponto de vista de mulher, isso é muito interessante”, afirmou. Para a atriz, o filme evidencia não apenas a força do protagonista, mas também a centralidade das mulheres como pilares de resistência e cuidado na trama.

A atriz portuguesa Isabél Zuaa, que interpreta Teresa Vitória, exilada angolana que se torna peça fundamental na rede de apoio a perseguidos políticos, falou sobre a profundidade e a força de sua personagem, A atriz é filha de mãe angolana, com pai da Guiné-Bissau.
“No filme, ela pode ser verdadeira, expressar o que gosta e o que não gosta, cometendo alguns excessos, mas com uma potência muito grande, a potência de querer mudar aquilo que se tem possibilidade de mudar e de não se conformar com aquilo que não se consegue mudar”, afirmou.
Zuaa também ressaltou a coragem do diretor em abordar temas delicados, como a história de uma empregada doméstica que perde o filho por negligência da patroa, evidenciando as múltiplas camadas do filme.
Já a mineira Laura Lufési, que interpreta a personagem Flávia, contou que o seu primeiro trabalho de destaque foi o filme O Agente Secreto. “Eles sempre me deixaram muito confiante assim de que eu estava pronta pra estar ali para fazer essa personagem”, disse.
O Agente Secreto
Antes de chegar ao Brasil, o longa teve sua estreia mundial em 18 de maio, na 78ª edição do Festival de Cannes, na França, onde foi ovacionado por mais de dez minutos e conquistou os prêmios de Melhor Ator para Wagner Moura e Melhor Diretor para Mendonça.
Com 2h40 de duração, O Agente Secreto resgata não apenas a memória de uma época de repressão, mas também o cotidiano de muitos brasileiros durante os anos 1970. Wagner Moura é o protagonista, no papel de Marcelo, um especialista em tecnologia e professor universitário que retorna a Recife após um passado turbulento em São Paulo, na tentativa de se reencontrar com o filho.
Ambientado em Recife, o filme foi roteirizado pelo próprio Mendonça e produzido em parceria com Wagner Moura, Emilie Lesclaux e Brent Travers. A estreia nacional está marcada para 6 de novembro.
Além da exibição, a noite de abertura homenageou Fernanda Montenegro, que recebeu o Troféu Candango pelo Conjunto da Obra. A atriz não pôde comparecer, mas o público assistiu a um minidocumentário sobre sua trajetória. O ator e jornalista Chico Sant’Anna, figura histórica da cena cultural de Brasília, também foi reconhecido com uma premiação da Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo (ABCV).
O Festival

O Festival de Cinema de Brasília segue até o dia 20 de setembro contando com uma extensa programação cultural em espaços culturais de Planaltina, Gama e Ceilândia. Além da exibição de 80 produções audiovisuais, o festival apresenta atrações musicais, festas, lançamentos de livros, bem como outras programações culturais.
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