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Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.ver mais

Três dilemas militares para o Sahel em busca por libertação

Novos presidentes militares do Sahel encontram um ambiente conturbado, numa África militarizada em múltiplas dimensões

O Instituto Tricontinental lançou recentemente um dossiê¹ que trata dos golpes militares com forte apoio popular e densa pauta anti-imperialista ocorridos no Sahel. Os levantes iniciaram-se no Mali, em 2020, e foram seguidos por Burkina Faso, em 2022, e pelo Níger, em 2023, num processo que culminou com a criação da Aliança dos Estados do Sahel, pacto que abrange aspectos bélicos como o compromisso de resposta conjunta em caso de agressão.

Os novos presidentes militares encontram um ambiente conturbado, numa África militarizada em múltiplas dimensões, que vão desde as velhas bases militares estrangeiras, passando pelo fracasso de missões de paz no bojo das Nações Unidas ou da União Africana, até a denúncia de como o grupo montado pela Interpol (G5-Sahel) para enfrentar o terrorismo era funcional apenas para a França. De forma geral, a pegada militar colonial seguiu presente na África, especialmente em áreas com recursos estratégicos, inclusive petróleo, agora sob a justificativa de enfrentamento ao terrorismo. Essa presença, ao invés de gerar um ambiente de estabilidade para o saque dos recursos estratégicos que interessam às potências, intensificou conflitos regionais, inclusive com o Estado Islâmico. Assim, funcionam como fonte de fragilização da soberania e da segurança dos Estados do Sahel, com impactos regionais.

Os golpes militares no Sahel foram comandados por patentes intermediárias, mais politizáveis, à esquerda e à direita, e com comando de tropa

Nas lutas populares por todo o Sul Global, os levantes no Sahel são um vento de esperança. Cabe, porém, cuidar para que a empolgação não sirva como oportunidade para que um cisco pegue carona na lufada de ar, e assim nos embaralhe a visão. Um conjunto de novos dilemas surge de um processo de libertação nacional anticolonial que nasce de golpes militares e conforma uma aliança defensiva de natureza militar. Eles foram reunidos abaixo em três blocos, que não substituem a leitura do dossiê já mencionado.

Dilema 1: as dificuldades de se conformar uma aliança de natureza militar

A Aliança dos Estados do Sahel surge em 2023 como resposta à Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao). Caso esse organismo mudasse de posição, a aliança se manteria? Uma aliança militar requer: 1) um inimigo comum; 2) um objeto de defesa comum; 3) uma estratégia de defesa comum ou, ao menos, inter-operável. A primeira questão parece estar clara – imperialismo francês –, mas e as demais? Os itens 2 e 3 guardam as dificuldades para a expansão da Otan (mesmo que países a desejem, como nossa vizinha Argentina), ou para a viabilidade do TIAR, ainda vigente na América.

Os novos governos deixam explícitas propostas de mudanças na área econômica, principalmente sobre soberania na exploração mineral. Mas existem propostas de reformas no desenho de defesa? A crítica à influência de potências estrangeiras feita pela Tríade à Cedeao é correta, mas diversificar o fornecedor de armamentos, optando por compras russas, não é o suficiente. O comércio de armas segue um jogo para as grandes potências produtoras, que se utilizam das limitações materiais da indústria de defesa local como fatores no jogo geopolítico. É significativo que os movimentos tenham escolhido as bases militares francesas como símbolo do colonialismo a atacar. Entretanto, a dimensão militar é apenas uma bruma se não vier acompanhada de mudanças econômicas.

Além disso, ao olhar para um governo militar, a população ambiciona ter prioritariamente resolvidos seus problemas de segurança. Ainda que a aliança obtenha êxito nas áreas econômica e política, caso não resolvam questões objetivas na área de defesa e segurança como a redução das mortes ligadas ao terrorism,, os atuais governantes cairão em descrédito. Apontar a responsabilidade francesa não é suficiente. Após a guerra nas Malvinas, ficou evidente que se os generais argentinos não serviam para ganhar um conflito, imaginem para governar o país. Por isso, a mudança no desenho de defesa e segurança é fundamental.

O grande desafio é não fomentar o dilema da segurança no interior do próprio continente africano, em que o resultado serão países mais armados (por diferentes fornecedores, é verdade), mais inseguros e deixando seus povos mais pobres. Medidas de confiança mútua são factíveis e necessárias dentro do continente. Brasil e Venezuela, por exemplo, compram armas de potências diferentes, mas quando se armam, não o fazem com a finalidade de usar contra vizinhos. Seu rearmamento não é considerado ameaça direta à soberania de nenhum país latino-americano.

Dilema 2: estruturas de defesa incorporam interesses comerciais e geopolíticos

O dossiê traz uma crítica de como a estrutura anterior incorporava os interesses franceses, mas é preciso esclarecer que as estruturas de defesa sempre incorporam outros interesses, e vice-versa. Como lembra Sankara²: “O imperialismo é um sistema de exploração que ocorre não só na forma brutal daqueles que vêm com armas para conquistar território. O imperialismo frequentemente ocorre em formas mais sutis, um empréstimo, ajuda alimentar, chantagem”. Os quatro fatores de hegemonia atuam de maneira combinada nos territórios: militar, política, econômica/financeira/tecnológica e cultural. A luta contra-hegemônica também precisa funcionar nas quatro esferas. O Sahel ajuda lembrando aos povos do Sul que não há libertação política sem uma dimensão armada (o que se pode expressar em um sem-número de outras questões).

O combate ao narcotráfico e o combate ao terrorismo são as duas ferramentas doutrinárias de controle das forças armadas da periferia, de manutenção dos ganhos com as vendas de armamentos em países como EUA e Israel e de militarização doméstica. Mesmo com as reiteradas vezes em que a militarização desses problemas agravou as situações de instabilidade doméstica, manter países primário-exportadores sob uma situação de caos controlado pode até ser útil para os negócios.

No dossiê fala-se em nacionalismo nostálgico. Saudades de quê? O nacionalismo nos países de centro pode derivar para a xenofobia, mas na periferia, é motor de lutas por libertação e de radicalidade. Lembrando que a direita também tem se dotado, ao menos discursivamente, de radicalidade. Muita gente que escolheu Bolsonaro ou Milei não gostava especialmente dos dois, mas não queria mais “o que estava aí”. Diante de crises, a promessa de estabilidade pode não ser o suficiente. Diante de crises ainda mais profundas, os povos podem estar tranquilamente dispostos a sacrificar a democracia liberal, que já não lhes entregava muita coisa mesmo, em prol de uma sensação de segurança. A diferença é que isso funciona à esquerda no Sahel, porém à direita em El Salvador.

Dilema 3: como pensar militares dando golpes com apoio popular e pautas progressistas?

Os militares funcionam no Sahel, e funcionaram em vários países, inclusive no Brasil dos anos 1940, como forças modernizadoras. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque militares observam como são lutadas as guerras e retornam aos seus países ansiosos por construir melhores condições objetivas, através, por exemplo, de políticas industriais, para que eles mesmo estejam mais bem preparados para lutar as próximas guerras. No caso do Sahel atual, uma novidade é que, ao invés de observarem guerras, também parecem fazer um balanço sobre as inúmeras missões de paz fracassadas no continente.

Além disso, forças militares regulares se profissionalizaram antes de outras instituições estatais na periferia. Diferente dos países do centro, em que exércitos surgem junto com Estados nacionais, na periferia são criados para garantir a exploração colonial, se profissionalizando antes de outros setores, como saúde e educação. A profissionalização tem impactos simples, mas muito profundos, como a escolarização – são alfabetizados, em países de maioria analfabeta em diferentes momentos da história.

Os golpes no Sahel foram comandados por patentes intermediárias, mais politizáveis, à esquerda e à direita, e com comando de tropa, o que oferece força, para além da vontade. Mas cuidado com a conexão automática entre ideologia e a origem de classe em que são recrutados os soldados. Mesmo quando as forças armadas funcionam como um espaço de ascensão social para as periferias, isso não as conecta necessariamente às pautas populares.

Agrupamentos militares golpistas, à esquerda e à direita, serão sempre mais fortes que os civis por três características principais: funcionam sob os princípios da hierarquia e da disciplina, o que lhes dá velocidade de decisão e garantia de cumprimento das decisões; são dotados de espírito de corpo, o que mantém as disputas internas em termos mais baixos que em grupos civis; e têm armas. Lembremos novamente Sankara, para quem “um soldado sem formação política ou ideológica é um criminoso em potencial”.

Por fim, um efeito “colateral” desse processo é que militares não olham para os seus compatriotas como pares, e a si mesmos como um espelho da nação. Na periferia, olham para o restante da cidadania como inferior a eles, em termos de comprometimento e de capacidade política. Daí tomarem a iniciativa dos golpes, à esquerda e à direita, por vezes sem a construção de parcerias com organizações civis com os mesmos objetivos políticos. Chavez é uma enorme exceção ao estimular a criação do PSUV e a organização popular, posteriormente à tentativa de golpe militar que ele mesmo sofreu enquanto presidente.

Não existem receitas para grandes mudanças, e a realidade sempre se apresenta de maneira dialética. O Sahel tem seguido o legado de Sankara ao se atrever a inventar o futuro alternativo. Uma invenção a quente, como são as areias do Saara, e que inspira os povos do mundo a seguir na luta anticolonial. Que, algum dia, os países do Sahel deixem de ser mendigos sentados em colinas de diamante, tomando de empréstimo a música de Océan.

¹ Recomendamos também o dossiê 42 do mesmo Instituto, publicado em 2021.

² Thomas Sankara foi um revolucionário de Burkina Faso que ocupou a presidência do país até 1987, quando foi assassinado. Líder do pan-africanismo, marxista e militar, é constantemente reivindicado pelos levantes atuais. Suas ideias foram divulgadas no Brasil pela editora Expressão Popular, que lançou, em 2023, o livro Discursos da Revolução.

Texto publicado originalmente no Opera Mundi

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